Revista Marimbondo

Desejos e modos de resistência

Na década de 1970, o espetáculo Estelinha by Starlight, dirigido por Ronaldo Brandão e com texto de Vicente Pereira, se desenrolava no porão de uma casa no bairro Santa Efigênia. Os atores moravam lá, eram gays, e a cena “trazia vestígios dos embates existenciais e ideológicos dessa opção” [!]. Após a censura do governo militar proibir sua exibição pública, Ronaldo e trupe ainda se apresentaram algumas vezes em casas de amigos antes de o espetáculo ser descontinuado definitivamente, nos conta Luiz Carlos Garrocho. Nas palavras dele, “acabou ali, no porão de uma casa, a vida de Estelinha by Starlight, com os seus pais, seus namorados assassinados e a luz mitigada, no ambiente de uma sexualidade domesticada e doentia de uma classe média conformada a tudo, mas enlouquecida”.

[!] Luiz Carlos Garrocho narra sobre Estelinha by Starlight em sua Tese de Doutorado Lugar e convívio como prática espacial e tessitura cênica: as performances urbanas do Coletivo Contraponto (MG), defendida em 2015 na Escola de Belas Artes da UFMG.

Talvez como uma metáfora do inconsciente que emerge do subterrâneo, vozes, ideias e vivências – antes subalternizadas ou entendidas como balbucios – revelam-se hoje práticas incorporadas nas muitas cenas teatrais da cidade; encontram formas e meios para sair das sombras. Aspectos identitários como idade, etnia, gênero e sexualidades também se manifestam, ajudando a tecer textos espetaculares e dramaturgia próprios que carregam uma recusa ao que (ainda) é tido como naturalizado, tanto àquilo que é representado quanto às formas de realizar as cenas.

Sem o olhar enviesado (e sem os ouvidos encerados!), é possível reconhecer essas cenas também em territórios não teatrais ou não circunspectos originalmente ao campo do estético. Nesta perspectiva, é possível enxergar “gestos simbólicos que colocam vontades coletivas na esfera pública e constroem de outras maneiras seu ser político” [!], suscitando olhares a partir do campo artístico. Há muito, multiplicam-se na cidade práticas cênicas contraideológicas, portanto de resistência, e que acentuam a duração do existir. Com corpos que não se conformam, que ocupam espaços negados, que recusam os silenciamentos, que inscrevem na memória outras histórias.

[!] Trecho do livro Cenários limiares: teatralidades, performances e política, da autora cubana, radicada no México, Ileana Diéguez Caballero.

Para tantos corpos, resistir segue ainda hoje como lema. Não como um ato heroico, mas, talvez, como nos diz o autor argentino Ernesto Sábato, como algo que é “menos formidável, muito menor, como a fé num milagre […]. Algo que corresponda à noite na qual vivemos”.