“Sá Rainha me chamou, mas eu já vou curiá. Sá Rainha me chamou, mas eu já vou curiá. Eu já me vou Sá Rainha, curiando devagar”, puxa a segundacapitã, Rúbia Eliete, o ponto para saudar a Rainha de Nossa Senhora do Rosário, Geise Natane. Capitão Rúbia tem 25 anos, 12 de capitania, a vida inteira no congado, um filho e uma filha que já lhe seguem fardados. Neste dia, que antecede o dia principal da festa-grande e é marcado pelo levantamento das bandeiras de promessa e das dos santos do panteão congadeiro, ela conduz a guarda com bastão na mão, campanha no pé, força na voz. Rainha Geise tem 20 anos, 10 de reinado, também nascida e criada no congado. Capitã e Rainha são tataranetas de Francisco Carolino, o Chico Calu.
No curto caminho entre o terreiro e a casa da Rainha, onde uma panela farta de arroz carreteiro espera pelos congadeiros, é necessário parar os carros da movimentada avenida Américo Vespúcio para a fé passar. A partir dali, a noite será longa, e Os Carolinos revezam-se entre rezas e os preparativos para o dia principal da festa-grande, anunciado quinze dias antes pelo hasteamento da bandeira de aviso, um comunicado aos céus e à terra. Cento e vinte quilos de frango ainda precisam ser temperados, e a rua, enfeitada. Uma cortina de garrafas PET afastará o córrego poluído dos visitantes. Os altares também já estão montados — São Jorge, São Judas Tadeu e Nossa Senhora Desatadora dos Nós. São Jorge, logo na entrada do terreiro, para limpar de todo o mal. No dia seguinte, a imagem maior de Nossa Senhora do Rosário sairá de dentro da capela para um altar na rua, e doze guardas visitantes serão recebidas.
O dia será de louvores a Nossa Senhora do Rosário, a mãe misericordiosa de onde vem a firmeza no contexto da pobreza, do desemprego, da desestruturação familiar, do abandono estatal, da doença e da morte. É a Senhora dos Homens Pretos que, onde existe pouco, tudo dá, e Undamba Berê Berê segue segurando a dor d’Os Carolinos, como segurou a de seus antepassados escravizados.
Em dia de festa-grande também reafirma-se a crença de que, enquanto a guarda durar e os antepassados forem festejados [!], a existência perpetua-se para além da morte física. “Temos que fazer tudo, o possivel e o impossivel, para Os Carolinos sempre existirem. Não importa que eu esteja embaixo da terra, porque atrás de mim tem meus filhos, tem meus netos, tem os filhos de Leca. É a gente saber preparar eles agora porque, quando a gente faltar, eles vão saber o que fazer e vão crescer com esse mesmo amor à Irmandade que nós temos, porque eles vão ver que tá no sangue. É a raiz. É a raiz que começou láaaaa atrás e ainda está florescendo”, conclui Capitão Nelson.
[!] De acordo com Leda Martins, em Afrografias da Memória: “Esses festejos reatualizam todo um saber filosófico banto, para quem a força vital se recria no movimento que mantêm ligados o presente e o passado, o decendente e seus antepassados, num gesto sagrado que funda a própria existência da comunidade, assim explicitada por Vincent Mulago: ‘Para o banto, a vida é a existência da comunidade; é a participação na vida sagrada (e toda vida é sagrada) dos ancestrais; é uma extensão da vida dos antepassados e uma preparação de sua própria vida para que ela se perpetue nos seus descendentes”.
Se a morte não me matar
Tamborim
Se a terra não me comer
Tamborim
Ai, ai, ai, tamborim
Para o ano eu voltarei
Tamborim