Revista Marimbondo

Cheirou Guiné

Exu é meu amigo leal
Exu é meu amigo leal
Toma conta do meu terreiro, toma conta do meu quintal
Toma conta do meu terreiro, toma conta do meu quintal

 

“Quem rola pedra na pedreira é Xangô. É Xangô!”. O canto ecoa pela Vila Senhor dos Passos, parte do complexo Pedreira Prado Lopes. “Ô viva, a coroa de Zambi, ô viva, a coroa de Zambi, ô viva, a coroa de Zambi é Xangô”. São 24 de junho, dia de São João Batista e, pelo sincretismo, momento de celebrar a manifestação menino do senhor das pedreiras, do orixá da justiça. Neste ano, a data caiu em plena sexta-feira, dia de baile funk na quebrada, mas o batidão só começa quando a festa de Xangô termina. “Xangô é Tata de Ararauê”. Quando os atabaques saem do terreiro para ganhar o beco, a galera do movimento se aproxima e participa. “Xangô é Tata de Araraô”. Aos pés do mastro de São João, amarrado à varanda da Casa de Caridade Pai Jacob do Oriente, as velas colocadas pelo povo do axé, pela comunidade e pelos visitantes ocupam e iluminam em comunhão o estreito passeio. “Ô viva a coroa de Zambi, ô viva a coroa de Zambi é Xangô”.

O terreiro, fundado em 1966 pela entidade Pai Jacob do Oriente – recebida por Joaquim Camilo -, é um dos oito (entre casas de Umbanda e Candomblé) a ocupar a pequena extensão da Vila. “Tem uma igreja evangélica, ali no asfalto, que abre de vez em quando, mas, aqui dentro da Vila, tem umas trinta rezadeiras mais os terreiros. Tem um que dá pra gente ver daqui, tem o do Joviano, mais pra cima, tem uma outra ponta que toca uma sessão de 15 em 15, de 20 em 20 dias, mais pra frente tem uma rezadeira que cura uma turma. E a Vila é um local miúdo. Isso vai mesclando o axé também: é de Umbanda, é de Candomblé, é de angola, de ketu ou é um jeje. Tinha a Dona Bela, do lado dela tem um zelador que ficou cego, perto do Bonfim, tem três terreiros, na Itapecerica, tem mais um, subindo a Pedro Lessa, tem mais um. Tem também a igreja (Capela Nosso Senhor dos Passos), mas que não abre, e hoje quem toca são as franciscanas com as obras sociais”. Quem nos oferece um panorama da religiosidade na Vila é Ricardo Moura, Pai Ricardo, filho dos médiuns Joaquim e Maria das Dôres de Moura, hoje zelador da Casa de Caridade Pai Jacob do Oriente.

Quando os pais de Pai Ricardo chegaram do Rio de Janeiro, na década de 1960, o então Buraco Quente [!], moradia das famílias que trabalhavam na exploração de pedras, era um brejo que ficava na boca de um matagal, com uma cachoeira próxima e esgoto correndo a céu aberto. Foi ao redor do terreiro que a Vila cresceu. “O pessoal não tinha posto de saúde, era chá e erva do terreiro. Problema psicológico era acolhido no terreiro. Briga de marido e mulher era separada no terreiro. Vai nascer menino? Terreiro. Vai batizar? Terreiro. Vai capar um gato? Terreiro. Campanha do Zé Gotinha? Terreiro”. A urbanização trouxe modificações para a vivência do axé, entre elas, a quase extinção de homens benzedeiros, já que eles trabalhavam com “coisas mais cascudas” que se tornaram raras por ali, como mordidas de escorpião e cobra. Pai Ricardo é um dos poucos que segue na tarefa, benzendo quebranto, cobreiro e erisipela.

[!] A alcunha pejorativa permanece, mas o nome da vila mudou na década de 1980, quando foi construída, no local, a Capela Nosso Senhor dos Passos, pertencente à paróquia Nossa Senhora da Conceição.

No espaço contíguo à pequena sala onde o pai de santo nos recebe, e ao lado da cozinha (cujo fogão tem sempre comida na panela para quem chegar), pessoas aguardam, às vezes por horas, para serem atendidas. Uma mulher com dor ganha folhas de saião aquecidas para colocar nas costas. Parte das plantas necessárias aos trabalhos são cultivadas ali mesmo, na fachada que virou jardim de Umbanda, com vasos de arruda, espada-de-são-jorge, levante, guiné, outras plantas e ervas, fitinhas do Senhor do Bonfim e medalhinhas amarradas na grade, e assentamento para o orixá Tempo. Um rapaz espera orientações sobre os atabaques de outro terreiro, uma senhora toma banho de ervas, Mãe Oziva passa pemba [!] nas guias que acabaram de ficar prontas. Naquele dia, Pai Ricardo irá jogar búzios, indicar banhos, dar conselhos amorosos, espirituais e profissionais, sair às pressas para apartar uma briga na rua, preparar um ebó [!] para alguém em sofrimento, visitar doentes, coordenar a produção de velas, orientar médiuns iniciantes nos mistérios do axé, começar os preparativos para a festa de Iemanjá [!] e distribuir as cestas básicas enviadas pelo programa Fome Zero. Se for uma segunda-feira ou quarta-feira, ainda conduzirá a gira que atrai centenas de pessoas em busca dos conselhos e dos passes das entidades dos médiuns da casa.

[!] Pó sagrado feito a partir de ervas e outros elementos.

Oferendas feitas aos orixás.

Em Belo Horizonte, a festa em homenagem à Rainha do Mar é realizada desde 1957, sempre no mês de agosto, na orla da Lagoa da Pampulha, na Praça Alberto Dalva Simão, popularmente conhecida como Praça Iemanjá. No local, encontra-se uma estátua da orixá que teve de ser reinstalada nas águas em virtude de depredações. Sob o nome “Encontro com Iemanjá”, desde 2012 a festa – que integra o calendário oficial de eventos da cidade – é realizada pela Casa de Caridade Pai Jacob do Oriente.

Assim como seus pais, na Vila Senhor dos Passos, e seus antepassados, em comunidades negras conformadas no Brasil desde a escravidão, Pai Ricardo é um líder religioso e político responsável pelo acolhimento da comunidade em necessidades diversas e pelo diálogo com as forças políticas que ali atuam, tendo papel fundamental na manutenção de um equilíbrio social fragilizado pelo contexto da pobreza, da violência e da negligência estatal. “Eu sou o rei!”, costuma brincar fazendo alusão ao cargo de Rei Congo, que acumula na Guarda São Jorge de Nossa Senhora do Rosário [!], localizada no Bairro Concórdia. Um rei negro confirmado pela tradição, pela espiritualidade e pela atuação. Ao analisar a história das festas de coroação de reis congos no Brasil escravista, a antropóloga Marina de Mello e Souza diz que “parte da força do rei vinha de sua ligação com o divino, do seu papel de elo entre o terreno e o além. A permanência no cargo, entretanto, ligava-se ao seu desempenho frente às tarefas e responsabilidades perante a comunidade que representava; às suas qualidades de chefe e capacidade de vencer eventuais opositores e adversidades” [!].

[!] Fundada em 1938.

Reis Negros no Brasil Escravista – História da Festa de Coroação de Rei Congo, de Marina de Mello e Souza, editado pela editora UFMG em 2002.

A intensidade e a violência dos embates de um período recente, em que a perseguição religiosa era institucionalizada, minimizam os conflitos atuais. “É diferente do que a gente vê hoje, que é religião contra religião, coisa de uns bitolados, umas besteiras. Antigamente, era Ditadura, era polícia”, diz Pai Ricardo, revelando que guarda os registros que o terreiro era obrigado a fazer no DOPS para exercer suas atividades. Foi com a firmeza de Mãe Maria das Dôres, que reinava soberana na Vila nas décadas de 1970 e 1980, que os anos de chumbo foram enfrentados. “Como meus pais sempre tiveram muita força, os orixás da casa, os guias da casa sempre tiveram essa força espiritual, essa magia muito bem assentada, os outros irmãos de terreiro, os outros quilombos, vamos dizer assim, qualquer problema, vinham e refugiavam aqui. ‘Ó Dona Maria, fiquei sabendo que o DOPS vai subir, guarda minhas coisas’. Mas teve momentos em que a polícia chegava querendo quebrar tudo, aí a gente pegava o atabaque, corria pra dentro do mato, escondia dentro do bueiro”. Hoje, a Casa de Caridade Pai Jacob do Oriente auxilia outros terreiros da cidade na relação com a burocracia e na organização espiritual. “A territorialidade física do terreiro é uma coisa;  a do axé é outra. O que se passa dentro do axé não vem de uma pessoa, sabe? É uma resistência, uma história, um povo”.