EPÍLOGO : Que minhas palavras se percam na noite
Compreendi então essas histórias que minha mãe contava, que circulavam pelas ruas sussurradas aos ouvidos, nunca em voz alta. Histórias em que já nada assombrava. Tudo se misturava. Tudo valia para sobreviver. A fome começava a dividir, a criar inimigos. Era comum ver homens, em frente a crianças, brigando por um pedaço de pão. “Não há lugar para a solidariedade, não há lugar para a humanidade”, isso minha mãe sempre dizia, que desde cima da mesa daquele bar me fazia sinais, momento irrepetível, ponto de interseção entre sua própria dor e a minha, hoje eu sei, compreendo hoje, distante, alheia, como implorando, mostrando o homem de jaqueta preta que termina o nono copo de cerveja e que sai do bar batendo a porta, internando-se na noite. Minha mãe me faz sinais.
A mim e a todos os que a olhavam, alheios, e esses sinais me servem para seguir hospedando a prevenção e o armazenamento das emoções; me disse que não as destrua, apesar de tudo, me disse, “é uma tarefa difícil mas necessária”; que não há outra maneira, minha mãe me disse, me disse mas já não fala, eu leio seus lábios, os gestos, sua boca vermelha, sua cabeça vermelha, são seus gestos que falam desde cima dessa mesa de bar, que me dizem que já não há mais palavras que lhe alcancem e refresquem a esperança, inenarráveis eram suas palavras, disse, mas que eu sim preciso tê-las, que as conserve ainda que me doa, ainda que me envergonhe, que nunca permita que se acabem, me disse, que minhas palavras se percam na noite.
FICHA TÉCNICA
Texto: Daniel Veronese
Tradução e Adaptação: Gustavo Bones
Concepção: Alexandre de Sena, Glaucia Vandeveld, Gustavo Bones, Mariana Maioline e Renata Cabral
Atuação: Glaucia Vandeveld e Renata Cabral
Trilha Sonora: Alexandre de Sena
Iluminação: Jésus Lataliza