Revista Marimbondo

AÍA

Luiz e Nadir tiveram nove filhos, nascidos e criados no congado: Maria José dos Santos (a Aía), Geralda de Assis Moreira (a Bina), Tereza Luzia Teixeira, Julio Luiz Moreira, Luiz Miguel Moreira Filho, Antônio Luiz Moreira, Nilo Luiz Moreira, José Luiz Bento e Marcílio Luiz Moreira (o Leca). Foi a Rainha Conga [!] Aía quem reinou com mãos firmes após o falecimento do pai. “Ela cuidava da sede, cuidava da guarda, brigava com os dançantes, com o capitão, saía brigando com todo mundo porque era igual meu avô mesmo”, conta a filha, a Capitã Mary. Dizem que foi por desavenças com Aía que Tiziu Binguêro — que posteriormente fundaria a Guarda de Moçambique Nossa Senhora do Rosário e São José [!] — deixou Os Carolinos. Seguindo os então novos tempos, a Rainha Conga comprou briga também com os costumes e rompeu décadas de proibição de mulheres na capitania da Irmandade Os Carolinos, realizando o sonho da afilhada Neide: ser capitã e poder tocar caixa.

[!] De acordo com Leda Martins, em Afrografias da Memória: “Enquanto os outros reis e rainhas representam N. S. do Rosário e outros santos do panteão católico, os reis congos simbolizam, além dessa representação, as nações negras africanas”.

A guarda foi fundada em 1987 e sua sede está localizada no Bairro São José, região Noroeste da cidade.

Foi acompanhando a madrinha, no entanto, que Capitã Neide aprendeu que o riso farto que carrega deveria ficar do lado de fora da guarda em formação. Tinha sete anos quando, achando graça da roupa que capitães de outra guarda estavam usando, seguiu Aía em um momento de riso solto. Ali mesmo, rindo, a Rainha foi colocada para dormir até o fim da festa que visitavam. Para a criança, o castigo veio quando já estava em casa e começou a enrolar a língua na hora de falar. “Saí correndo pra gritar minha madrinha, só que, na hora, eu não dei conta, eu caí. Tirando isso, eu só lembro da imagem do meu avô. Meu avô era muito pretinho, mas tinha uns dentes muito bonitos, e meu avô rindo, com aquela imagem de Nossa Senhora Aparecida na mão, sabe? Sei que quando eu fui acordar mesmo, eu tava no centro espírita da madrinha da minha mãe lá no Boa Vista. Ela trabalhava com um guia que era o pai do Chico Calu”, conta a capitã, que hoje vigia dentes à mostra durante os louvores.

Como se vê em Os Carolinos, como em muitas das guardas tradicionais, seu esteio ancora-se na família fundadora e em redes de parentesco. A madrinha da então Rainha da Cruz, Bina, mãe da Capitã Neide, era Tavêra, irmã de Luiz Carolino. Imponente, sempre em trajes impecáveis, com cachimbo na mão, mascando fumo, “tinha o poder no olhar de dominar as pessoas”, rememora Tizumba. Hoje, é Capitã Neide quem segue os passos de Tavêra e Aía. Em seu quarto, Escrava Anastácia, Preto Velho, Zé Pilintra, o retrato da emblemática rainha Dona Bela [!], alguns budas dourados e a TV ocupam a cômoda envolta pela bandeira do Brasil. “Eu preciso da minha força, eu preciso ter força. Devido o Rosário que eu tenho a minha força pra continuar na minha Umbanda. Os preto velho são da nossa coisa mesmo, os escravos. Anastácia também é. Todos os congadeiros mexem um pouquinho, nem que seja escondido, mexe sim”, diz ela. Tais narrativas denotam a forte relação dos congados com toda a tradição religiosa de matriz afrodescendente ancorada no culto e na presença dos ancestrais, em especial a Umbanda.

[!] Maria Elizabete Gonçalves, a Dona Bela, morreu aos 110 anos em 2014. Ela era rainha da Guarda de Moçambique Nossa Senhora do Rosário e São João Batista localizada no aglomerado Pedreira Prado Lopes, na região Noroeste.

Foi Tavêra quem, após a morte do irmão, retomou os festejos de Chico Calu no Retiro com o apoio de Antenor Carolino e de Ernestino Augusto da Silva, Seu Nestino, pai de Constantina Policena Santos, Constança, hoje Rainha da Vara de Ouro. Ela lembra que o dia de sua coroação foi cercado de temores, peso de uma responsabilidade que ainda carrega no semblante. “Meu Deus! A coroa, será que para na minha cabeça? Fiquei só pensando, com aquele medo. Mas colocou a coroa e ficou, graças a Deus”, revela uma das muitas aflições. Desde que os festejos foram retomados, no final de semana após o dia principal da festa-grande em Belo Horizonte, Os Carolinos seguem para Contagem e homenageiam o trono coroado e seus antepassados fundadores em mais dois dias de festa.

Aía e Tavêra ainda moravam próximas, ambas no Boa Vista, região Leste de Belo Horizonte. Foi após a perda do primeiro marido para o álcool — Zé do Cachimbo, goleiro do Social, um dos times que fazia a fama da tradição futebolística do bairro Aparecida —, que Aía deixou o terreiro ao casar-se com José Maria, a quem nomeou Rei Congo. Após a partida da Rainha Conga, Bina, o guarda-coroas Idelfonso Pereira da Silva e seus sete filhos tornaram-se os responsáveis pela manutenção do terreiro e da capela, função por vezes compartilhada com os vizinhos. Tizumba enfatiza que mesmo aqueles e aquelas que não eram do congado orbitavam em torno da manifestação, instigados pelo pertencimento comunitário. “A partir do momento em que você tá na comunidade, são negros defendendo negros. Minha mãe descia pra lá pra cozinhar, Tia Santina descia pra lá, meu pai mal sabia escrever o nome dele e, todo ano, ele ia lá fazer escada pro povo subir, porque a escada era de terra e, quando chovia, ela ia embora”, relembra.

Nessa época, as doenças ligadas à água, como a esquistossomose, já começavam a preocupar, e o córrego — que um dia Luiz Carolino descobriu limpo e onde ainda seus netos pegavam piabinhas — convertia-se, aos poucos, em um grande problema que Bina, Aía e Idelfonso morreriam sem ver resolvido. Capitã Neide e suas irmãs, que hoje vivem com as famílias no terreiro, aguardam o projeto de  saneamento básico conquistado no Orçamento Participativo de 2011, mas até hoje negligenciado pela Prefeitura de Belo Horizonte. O córrego é atualmente um esgoto que corre a céu aberto margeando o solo sagrado d’Os Carolinos.

Uma das brigas perdidas pela batalhadora Aía foi contra as tristezas da vida. A perda de um filho afogado aos 17 anos bambeou a firmeza da Rainha e, à depressão seguiu-se o câncer. Quando a mãe já não conseguia mais reinar, Maria José dos Santos, a Zezé, assumiu a coroa de Rainha Conga [!].

[!] Após o falecimento de Zezé, Marlene Guilhermina, a Marlene da Broa, tornou-se a Rainha Conga d’Os Carolinos. Sem laços de parentesco com a Irmandade, Marlene ingressou no congado por intermédio de Luiz Carolino. Na época, um problema de saúde a levara para a iminência de amputar as pernas. De acordo com relatos, após seu fardamento em uma festa-grande, sua saúde melhorou e as pernas foram poupadas. Rainha Marlene seguiu à frente da coroa maior até seu falecimento e, desde então, Os Carolinos estão sem uma Rainha Conga.

“Eu ficava achando bonito ele seguir aquela festa, participar direitinho, vestir. Então fiquei curiosa daquilo dele vestir, aí falei: ‘pai, eu também queria vestir, seguir o senhor’. ‘Minha filha, a festa é muito boa, muito forte, muito bonita, mas pra seguir ela tem que ter fé, tem que ter boa intenção, aí você que resolve, você e Nossa Senhora que resolve, porque procê coroar e não seguir direito não compensa não’. Aí conversei com Tavêra, que ela e que comandava tudo, ela e Maria. Aí elas pegou e me aconselhou tudo direitinho, aí eu não desanimei, aí eu fui em frente com eles, graças a Deus. Comecei, já coroei, já vesti e gosto”.
RAINHA DA VARA DA CRUZ, CONSTANTINA POLICENA SANTOS, CONSTANÇA

“A vida dela era o congado, ela não tinha outra coisa não, era o congado e o espiritismo que ela gostava demais, ela chegou quase a ser mãe de santo no terreiro de Tavêra. O congado e a macumba pra ela era a vida dela. Minha mãe gastava tudo o quê ela tinha pra fazer festa de congado”.
CAPITÃO-REGENTE WILSON MOREIRA SOARES, SOBRE AÍA

“Eu sou confirmado no congado através da minha tia Aía, que ela que me dá meu primeiro bastão, ela que me dá minha primeira farda. No dia em que ela me deu o bastão, eu cantei, eu fiz uns três trajetos passando pela Igreja Santa Luzia cantando até na pracinha São Vicente, eu sozinho, ninguém me pediu o bastão, ela me entregou o bastão e ninguém, ninguém me pediu o bastão. Ali foi o meu batismo. Ali, naquele dia, cantei sem parar”.
MAURICIO TIZUMBA