No começo do século XX, por volta de 1917, Francisco Carolino funda, no Retiro, uma guarda para louvar Nossa Senhora do Rosário. Nas cercanias do recém-criado município de Contagem [!], na divisa com Santa Quitéria — hoje, Esmeraldas — o Retiro de Chico Calu era um pequeno arraial quase todo formado por fazendas até pouco tempo escravagistas. Lá, as origens do congado remetem a um passado muito mais distante e inexato. Sabe-se que existia ali uma lagoa grande que há muito secou, conhecida como Lagoa Seca, ponto de encontro de poderosos capitães [!], hoje Rua 10, ainda de terra e ainda a abrigar descendentes de Franscisco. Uma das histórias que se perpetuou foi a de que havia ali um pau fincado no meio do caminho e que, sempre que tentavam arrancá-lo, o canto dos negros escravizados era ouvido e ele não se movia. “Quem poderia contar mais já morreu”, lamenta a ausência dos antigos Geraldo Lima, 73 anos vividos na região.
[!] Contagem foi transformada em município em 30 de agosto de 1911. Antes disso, pertencia à Comarca do Rio das Velhas, distrito do município de Sabará e, em 1901, foi vinculada à Santa Quitéria, atual Esmeraldas. O Retiro é um bairro da região de Nova Contagem.
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De acordo com Elizângela Aparecida Santana, capitã da Guarda de Moçambique de Nossa Senhora do Rosário do Bairro Alto dos Pinheiros, em Percursos do Sagrado: “Como na Umbanda tem o pai de santo e ele é totalmente respeitado, na Irmandade do Rosário é o capitão. Tem a responsabilidade de carregar o mandamento e o fundamento. Cabe a ele, inclusive, sentir se o lugar tá bom, se a comida tá boa, tá abençoada, senão ele mata um exército. Ele tem que tá ligado a Nossa Senhora do Rosário o tempo inteiro. Se tiver um tiro, uma bomba, o que for, espiritualmente falando, é dele”.
De Chico Calu, Geraldo era criança demais para se lembrar direito, mas a visita à casa da tia está entre suas lembranças mais nítidas. Por volta das três horas da manhã, o menino e a mãe iniciavam a caminhada pelo mato em direção a Contagem, onde passava o trem. Só chegavam a Belo Horizonte lá pelas quatro da tarde, já sem se aguentarem de fome. Hoje, a viagem de ônibus do Retiro ao Centro da capital, nos horários de pico, chega a durar 3 horas e só pode ser feita até as 23h, o que levou o capitão-mestre, Nelson Pereira da Silva, bisneto de Chico Calu, a passar aperto quando o corpo adoeceu depois do horário permitido. “Se ficar neste mato, vou morrer”, e decidiu retornar do Retiro para BH em 2010, mas esse caso ainda não está no tempo de Francisco.
Provavelmente filho de escravizados, nascido bem depois da Lei do Ventre Livre e um pouco antes ou logo após a Lei Áurea, de Chico Calu ficou o mistério. “Ele pegava uma espada e falava com você assim: o que você quer que saia da ponta dessa espada? O que você escolhesse saía. O que você escolhesse saía. Se você falasse: eu quero que saia sangue dessa espada, saía sangue. Eu quero que saia água, saía água. Ele era mestre. Como ele, hoje a gente não vê em lugar nenhum. Esse era o meu bisavô, Franscisco Carolino, Chico Calu, e daí veio a origem”, explica Capitão Nelson. Francisco recorria à magia, sobretudo, para enfrentar outros capitães que, sabendo de sua fama, o desafiavam [!]. Para Capitão Nelson, a força de Chico Calu vinha da descendência direta de africanos, dizem que até mesmo de Chico Rei. “Mas como ter certeza?”, indaga sem resposta o capitão-mor Nilson Pereira da Silva, outro bisneto do fundador.
Se da história de Francisco sabe-se pouco, da dona dele, os compadres Noé Macariu Muniz, 72 anos, e David Tolentino Muniz, 75, recordam-se com lágrimas nos olhos. Maria, benzedeira e parteira, era quem olhava as mulheres do Retiro em uma época em que não tinha outra forma de se ganhar filho a não ser por mãos que conduziam os saberes populares. Fumava cachimbo, não falava palavrão e tinha um cruzeiro no quintal de casa. “Nós éramo menino de escola, então a turma, quando dava esse solão assim, ia molhar a cruz lá em Chico Calu”, emociona-se Noé. “Maria Júlia”, Dona Noêmia, de 87 anos, faz força para a voz sair e revelar o nome completo da sogra.
Não se sabe quantos filhos Francisco e Maria tiveram, mas, para essa história que segue, ficam três nomes: Maria Raimunda Roque, a Tavêra, Antenor Carolino Moreira e Luiz Miguel Moreira, o Luiz Carolino.