Revista Marimbondo

Constança escreve

Querida Sinhóca,

Perdoa-me se demoro á escrever-te, não tenho nada a dizer e
estou tão zonza, ou tão estupida que não sei ligar duas idéas. Minha
querida, estou com um genio isuportavel; tudo me aborrece ainda
que nada me contrarie. Se todos vissem minh’alma, encontrarião no
fundo d’ella tanto desprezo da vida que ninguem me atturaria, pois eu
mesma custo a me supportar.

Não vás dizer que a causa d’isso é falta de trabalho, não, não é.
Quanto mais que eu tenho muito que fazer, e se não tivesse procuraria.

Cada moço que vejo me parece um vomitorio (aqui n’esta rua
é que é o passeio d’elles agora) a Isabellinha não sahe da janella e
toda hora grita: ahi vem Fulano. Isto me faz ter inveja d’ella. Se eu me
distrahisse com tão insignificantes cousas seria bem mais feliz.

Contudo não posso exprimir como estou alegre e ao mesmo
tempo receiosa pela resolucção e irresolucção em que meu Tio está,
de vir para Ouro Preto. Minha amiga, faze todo o possível para vindes
ainda que estás muito contente ahi, se tiveres [papel rasgado] gas
ficarás feia e, portanto, triste. E quanto mais que não deves pensar só
em ti: pensa em teu pai, que é a maior felicidade que tens n’ste mundo…
em tua mai e irmãs.

Adeus, minha querdissima, receba un affectuoso abraço de tua

Constancinha

 

“A visita aos arquivos, sejam eles históricos
ou literários, reserva surpresas a todo
pesquisador, que talvez se depare com algum
documento que não previa encontrar. O
acaso da descoberta é uma das sensações
mais inusitadas a serem cultivadas durante
o trabalho arquivístico, pela quebra da
perspectiva inicial, cedendo lugar ao exercício
da criatividade, uma vez que a nova rota
convida para a abertura de outros horizontes”,
escreve a crítica literária Eneida Maria de
Souza no texto de orelha do livro Cartas –
Constança Guimarães (1871-1888), publicado
em 2021 pela editora Quixote+Do.

A organizadora do livro, a historiadora e
pesquisadora Eliane Marta Teixeira Lopes,
vivenciou uma dessas aventuras do acaso
ao encontrar, no Arquivo Público Mineiro,
algumas cartas que a jovem Constança
Guimarães endereçou às suas primas nos anos
1887 e 1888. Eliane, que é também professora
emérita da UFMG, buscava documentos sobre
educação musical nas regiões de Vila Rica e
Mariana nos séculos XVIII e XIX, quando um
nome de mulher lhe chamou a atenção – e,
segundo ela, “nomes de mulheres são raros em
arquivos públicos”. A quebra da perspectiva
inicial, como diz Eneida, revelou-se uma
descoberta valiosíssima.

Constança nasceu em 1871 e viveu em Ouro
Preto, filha de Teresa Maria Gomes Lima
(Guimarães) e do romancista e poeta Bernardo
Joaquim da Silva Guimarães, autor de A
Escrava Isaura. Pelo seu olhar, conhecemos
um pouco da vida social ouropretana no
século XIX e temos notícias de seus familiares,
muitos deles convivendo com a “peste branca”,
como era conhecida a tuberculose, doença
que chegou a ser endêmica e devastadora à
época. Suas cartas “não tinham tom piegas ou
submisso, não evocavam santos e Deus, tinham
um tom muitas vezes sarcástico e irônico”,
descreve Eliane.

Junto às cartas e ao fac-símile, Eliane nos
presenteia com um ensaio sobre Constança
e sobre a época em que a jovem viveu. Não
se trata de uma biografia, mas há algo que
ganha vida a partir das experiências narradas
por Constança e tornadas públicas por Eliane.

Nesse encontro afetivo entre duas mulheres
separadas por mais de um século, é possível
conhecer a presença de algumas mulheres
naquela sociedade, quase sempre mantidas à
sombra. Cartas – Constança Guimarães (1871-
1888) oferece a elas uma coexistência junto a
nós e, em alguma medida, soma a história delas
às nossas.

Como foi esse encontro? Gostaria que falasse
também sobre esse gesto de recuperar uma
pessoa a partir da escrita; reinscrever sua
história jogando luz sobre ela.

A maior surpresa, antes de conhecer as cartas
e qual era a família e descendência de sua
autora, foi encontrar um nome de mulher, de
uma mulher do século XIX, no Arquivo Público
Mineiro.

Como se sabe, os arquivos oficiais guardam
documentos de estado e de homens públicos
que raramente revelam a participação de suas
famílias, sobretudo mães, mulheres e filhas, na
construção de suas biografias. O encobrimento
até do nome dessas mulheres, seja pelos
documentos que foram escolhidos para serem
guardados, seja pela história e historiografia,
nos obriga a ir buscá-las, tirá-las do gineceu
onde as legaram, e dar a elas o papel e o lugar
que tiveram.

Confesso que tive uma grande emoção ao
encontrar a pasta com as cartas. Não apenas
pelo fato em si, mas por ter sido eu a descobri-la. Mas ainda de nada sabia. As melhores e
mais importantes conexões iam ser feitas mais
tarde. Não poderia reescrever sua história posto
que os únicos elementos de que dispunha
eram as cartas. Mas, como você bem assinalou,
eu poderia “reinscrever sua história” junto a
outras mulheres e homens de seu tempo. Uma
reinscrição, por meio da minha escrita do ensaio,
que mostrasse as calamidades de sua doença.

Constança fala de mortes e fala da doença que
viveu, apesar de não a nomear. Na literatura,
o “mal do século” é quase exclusivamente
imaginado e referenciado aos homens.
Que outra perspectiva ela traz?

Como disse no ensaio, Constança mais sofreu
que viveu. De sua infância nada pude saber,
mas as vidas de sua mãe, sua avó D. Felicidade
(uma mulher incrível!) e, sobretudo, a de seu
pai, o grande escritor Bernardo Joaquim da
Silva Guimarães, revelam traços das vidas que
a cercavam e mesmo seu estilo epistolar. Talvez
Constança tenha nascido em Conselheiro
Lafaiete, mas foi batizada na Igreja do Pilar,
em Ouro Preto, conforme mostra sua certidão
guardada na Casa do Pilar. Quanto à doença
que a acomete, certamente não começou
quando, nas cartas, começa a relatá-la, mas
essas circunstâncias permanecem inacessíveis.
Quais foram os primeiros sintomas? Como
a família reagiu? Por enquanto, ainda há
silêncio – quem sabe posteriores pesquisas nos
revelarão algo?

Sim, ela nega a doença, mas, negando-a em
várias passagens das cartas, ela a revela,
descreve os sintomas e, na frase “Estou quase
sã, a tosse é que me faz perder a paciência, mas
eu acho que ainda não é dos pthisicos (salvo
ortografia)”, usa o termo então empregado na
época. Os sintomas que revela são dolorosos
e extremamente pungentes, até mesmo para
quem lê. Seu humor amargo, inteligente e
poético – “Por mais que eu queira pensar que
está muito satisfeita ahi, não posso accreditar
que uma mineira, livre filha das montanhas
accostumada a respirar o ar livre de sua terra,
possa viver suando 24 horas por dia e ouvindo
conversas estúpidas e insensatas d’essas
tagarellas fluminenses”* – mostra bem que é de
uma família de letrados e que – talvez – tenha
“herdado” esse humor do escritor de quem era
filha. Mas o que nos traz melhor a perspectiva
feminina são as cartas e a história das mulheres
tuberculosas que cito no ensaio a partir do livro
O paraíso e a esperança, de Irene Rezende.
É uma vida segregada, de submissão aos
homens, muito sofrimento que busca amparo
vão na religião. Sugiro a leitores e leitoras que
busquem esse livro.

Você tem várias cartas em casa, certo?
Também publicou o livro Querido alguém,
que trata das relações mediadas por
cartas, este fio que se constrói por meio de
correspondências. Gostaria de te ouvir sobre
o que se perde hoje quando se renuncia a elas
(as cartas e, especialmente, cartas à mão).

Na verdade, Querido alguém é uma outra
história. As cartas desse livro foram todas
inventadas, na maioria das vezes a partir
de circunstâncias pessoais, que ficaram
guardadas muito tempo e foram recebendo
um tratamento mais literário, sem perder
o tom coloquial. Quando eu encontrei a
designer de livros Sylvia Vartulli, que topou
pensar o livro comigo, levamos o projeto à
frente. A partir do livro de Ulisses Carrión,
A nova arte de fazer livros, descobri que a
autora não faz o livro, ela escreve o livro.
Há muitos profissionais envolvidos no
processo de fazer o livro que se empenham
para que ele seja um produto de qualidade.
Não foi fácil, nem mesmo a Empresa Brasileira
de Correios via vantagem em financiar um
livro de cartas! Mas, afinal, o livro ficou pronto
e muito bonito: as autoras e patrocinadoras
somos eu e Silvia.

Atualmente, pode-se até escrever um e-mail em
formato de carta ou enviar uma carta no e-mail,
mas não serão cartas. Acho que mais do que
um estilo ou formato, a carta envolve uma certa
disposição em percorrer todo o processo. Caneta
ou lápis à mão, várias decisões começam a ser
tomadas: em qual papel? (De seda? Enfeitado?
Cheiroso? De linho?) Sempre dependerá do
destinatário, aquela/e a quem se dirige a carta;
estará no mesmo endereço? Com disposição
de receber carta minha? Caneta tinteiro?
Tinta colorida? Esferográfica? Lápis? No que
diz respeito aos cumprimentos, tratamento,
tamanho, despedidas, são os mesmos embaraços
de certos e-mails. Mas há o envio, par avion?
Expressa? Com A.R. ou sem? São as escolhas,
decisões e sua longa duração o que se perdeu
quando a carta caiu em desuso. Quando voltei
depois de passar um ano no exterior trouxe quatro
quilos de carta, as que me enviaram. As pessoas
que enviaram tanto tinham necessidade de contar
o que se passava no Brasil (1987-88) (e eu queria
saber) quanto de me fazer um pouco de companhia
com palavras carinhosas, fofocas, pedidos de
compras etc. Minha avó escreveu uma carta ao
meu avô em 1936 e a tenho até hoje. O que é mais
saboroso em cartas de escritores, de compositores
ou dos vizinhos que se mudaram e não deixaram
endereço, é o tom de intimidade que roubamos um
pouco do seu verdadeiro destinatário. As cartas são
escritas para durar; para as cartas não existe delete,
é o dilaceramento e o lixo ou o fogo

 

*Não repare no pedantismo,
elle surge da vontade que eu
tenho que venhas para cá.