“Para fazer toda a minha doutrinação nas artes cênicas, na arte da cena de dançar, eu deixei toda minha bagagem de lado, desconsiderei praticamente toda minha cultura de casa. E eu acho que essa é uma questão que acontece com a maioria dos artistas”, afirma o dançarino, coreógrafo e investigador de culturas Rui Moreira. Nascido em São Paulo, em uma casa movida por manifestações dançantes, não atinou em levar na mala os fins de semana de sambas e bailes e os dias embalados pela música de Milton Nascimento, Jorge Ben e James Brown quando, na adolescência, escolheu se tornar um artista da dança. Depois de estudar com Klauss Vianna na Escola Municipal de Bailados e passar pela Cisne Negro Cia. de Dança e pelo Balé da Cidade de São Paulo, trocou a Barra Funda por Belo Horizonte em 1984.
Como integrante do Grupo Corpo, viajou o mundo antes de, lá e de volta outra vez, se reencontrar com sua própria história. O pontapé inicial para essa (re)existência foi o encontro, no início da década de 1990, com o músico, ator, educador e diretor artístico Gil Amâncio. “Ele me apresentou o seu estudo e a sua relação com a ancestralidade negra. A pesquisa dele dos sons e ritmos nos aproximou de tal maneira que a gente começou a desenvolver um trabalho juntos”, relembra. Nasceu daí, em 1993, a Cia. Será que?, grupo criado por Rui Moreira, Guda e Gil Amâncio [!].
[!] Em 2005, Guda e Gil Amâncio se desligaram da companhia para se dedicarem a projetos autorais.
O interesse em investigar as matrizes africanas no Brasil – a começar por “sua própria matriz”, no sentido da busca por sua identidade – trouxe para cena não só aspectos reconhecíveis dessa ancestralidade, mas também elementos pouco óbvios. Em De Patangome na Cidade, primeira performance da companhia, para além do instrumento percussivo referenciado no título [!], o trio trazia em seus corpos uma herança literal e simbólica. “O figurino era composto por roupas de um tio meu e, por serem desse meu tio, nós identificamos que ali existiam também traços da negritude no Brasil. A decisão dele de como se vestir [sempre de ternos alinhados] já nos apontava uma leitura sobre esse traço social no Brasil”, conta Rui. Foi a primeira ação cênica construída pelo grupo tendo em mente o desejo de assumir a corporeidade negra, as maneiras como esse corpo se refere a determinados temas e assuntos e como ele reage musicalmente. “E não são só situações explícitas, não é só o tambor, não é só a religiosidade, mas, sim, o apanhado de diferentes elementos que, trabalhados contextualmente, faz ver que ali estão os traços de negritude”, afirma.
[!] Instrumento de percussão típico de Minas Gerais, composto por uma caixa fechada com contas soltas, e muito usado nas congadas e reinados.
A relação com a música e as diferentes musicalidades dessa bagagem ancestral sempre foram tão fortes que o dançarino conta que já foi considerado músico – um imbricamento entre as duas manifestações culturais que ecoa do continente africano. “Lá, a relação entre dança e música é muito intrínseca. É muito difícil ver um músico que não dança e vice-versa, uma vez que cada toque do tambor significa um gesto. Existem algumas culturas em que música e dança são designadas pela mesma palavra”, afirma.
‘ELES QUISERAM QUE EU FOSSE COM ELES’
Um dos vários projetos investigativos realizados pela associação SeráQuê? Cultural através da Rui Moreira Cia. de Danças se desdobrou, ao longo dos anos seguintes, na trilogia de espetáculos Ês quis (2005), Q’eu isse (2008), Co ês (2015) – títulos que, juntos, formam a frase “eles quiseram que eu fosse com eles”. Como nos festejos tradicionais das irmandades do Rosário, começa-se com uma saudação: em Ês quis, espetáculo criado a partir da investigação dos festejos afro-mineiros, dançarinos com vestimentas brancas fazem coreografias circulares, tendo no centro um mastro que era uma antena de ligação com os ancestrais, ao ritmo da música percussiva, compondo um grande cortejo. Já na segunda parte, a urbanidade das periferias e dos aglomerados é confrontada com uma ideia da América Central, investigando convergências entre as culturas indígenas e africanas. “É um trabalho que está permeado pelas questões ligadas a esse corpo híbrido, que é o corpo ocidental do Novo Mundo e que é esse corpo das diásporas”, explica.
Foi o desejo de investigar as construções culturais, sociais, políticas e artísticas derivadas do êxodo africano que fez o dançarino embarcar, em 2007, rumo à École des Sables, centro internacional de formação profissional em Danças Africanas Tradicionais e Contemporâneas, localizado na costa de Dacar, no Senegal. “Nessa escola, pude confrontar o meu corpo, a minha latinidade, o meu lado ameríndio, minha afro-brasilidade com as culturas africanas. Esse encontro de várias nações representadas por seres sociais interessados em trocar informações amplia muito nossa noção de identidade porque aparecem pontos comuns e, ao mesmo tempo, pontos que não se encontram. E com essas diferenças também se constrói”, afirma. Em 2015, Rui retorna ao vilarejo de Toubab Dialaw para uma residência artística: sob orientação de Patrick Acogny, coreógrafo e diretor artístico e pedagógico da tradicional escola, elaborou e organizou elementos para uma nova criação. “Foram aulas constantes de dança com alguns professores que estavam na escola, juntando algumas manifestações populares das quais eu pude participar. Percorrer Dacar é uma experiência cultural incrível dada a diversidade estética e social, essa convivência paralela de vários cultos religiosos, a sonoridade disso tudo”, conta. De lá voltou com Co ês, espetáculo apresentado pela primeira vez na Mostra Benjamin de Oliveira [!].
[!] Idealizada pela Cia. Burlantins em 2013, a Mostra Benjamin de Oliveira surgiu como uma homenagem da Cia Burlantins ao primeiro palhaço negro do país e criador do circo-teatro brasileiro e tem a proposta de ser um espaço de difusão e valorização do trabalho de atores e atrizes negros.
“Em Co ês, eu vou buscar virar a curva, eu vou direto à África para voltar e observar com quem é que eu estou andando – o confronto desse que viaja, que passa por muitos lugares e que não deixa de ser ele. Mas, ao mesmo tempo, tudo que vê, o que leva e o que deixa o transformam. É um viajante permeado por aquele que fez a viagem lá no congado, aquele que fez a viagem dentro das grandes cidades, e aquele sai desse lugar qualquer e vai em direção a um lugar desconhecido na vontade de continuar, de dar continuidade para essa percepção, para essa vida que ele escolhe, que se renova a partir da experiência, a partir dos novos encontros”, conta.
MÚSICA COMO UM GESTO
Em 2008, o ator Rodrigo Jerônimo e a atriz Bia Nogueira faziam parte do grupo Rosa dos Ventos, que nasceu a partir de uma oficina ministrada na Lagoa do Nado em 2005 pela cantora e preparadora vocal Titane, pelo dramaturgo João das Neves e pela preparadora corporal Irene Ziviani – experiência que serviu como pontapé inicial para uma metodologia que integraria os processos de preparação e criação que o trio viria a trabalhar em conjunto nos anos seguintes. Naquela ocasião, 10 anos atrás, a ideia de Titane era formar um coral para acompanhá-la em um novo espetáculo, um grupo que tivesse desenvoltura cênica, que tocasse instrumentos, cantasse e dançasse. Surpresa com o número de pessoas interessadas (foram mais de 200 inscrições), mudou a proposta e convidou os parceiros para o desenvolvimento de diferentes módulos de criação, que culminaram no Exercício nº 1 e em seu desdobramento, Titane e o Campo das Vertentes.
“A gente estava com desejo de se profissionalizar e resolveu apostar de verdade nisso”, relembra Bia Nogueira. Os irmãos e outras seis pessoas formaram então o Grupo dos Dez – que nunca teve a dezena de participantes indicada no nome – para dar continuidade às inquietações que os inspiraram durante o processo formativo. “A pesquisa de linguagem era uma grande pergunta: o que vem a ser o musical brasileiro? Desde as operetas, o Teatro de Revista, passando pelo teatro musical da década de 60 e 70, até chegar ao que tem sido feito hoje, com a Broadway como um mercado em expansão”, conta Bia.
Junto com o trio de professores, montaram o musical Sagas do País das Gerais, adaptação da série de livros escritos por Agripa Vasconcelos que leva o mesmo nome do espetáculo. Depois de um ano de pesquisa, o espetáculo estreou a primeira montagem em 2009, mas o grupo logo se desarticulou. “A gente só conseguiu se dedicar com metodologia e maturidade a essa pesquisa com Madame Satã”, avalia Rodrigo. Em 2014, o Grupo dos Dez recebeu apoio da 17ª edição do Oficinão Cine Horto – projeto de reciclagem e aprimoramento para atores com experiência – para sistematizar a pesquisa acerca da função da música na organização do espaço cênico e na dramaturgia de um teatro musical tipicamente brasileiro e tirar do papel a versão teatral da história de João Francisco dos Santos, negro, pobre, homossexual, mais conhecido como Madame Satã, grande personagem da vida noturna e marginal carioca. Com direção geral de João das Neves, Rodrigo Jerônimo ficou responsável pela codireção da montagem e assinou, ao lado de Marcos Fábio de Faria, a dramaturgia, enquanto Bia Nogueira foi responsável pela direção musical do espetáculo. “E foi o Benjamin Abras que trouxe a pesquisa da corporeidade negra para a pesquisa de musical”, afirma Rodrigo. Tendo como método principal o treinamento para a capoeira angola, o samba de roda, a dança dos orixás e a dança contemporânea, o bailarino e ator trabalhou com os atores habilidades corporais capazes de criar significados diversos para os movimentos de origem afro-brasileiros e, a partir de partituras corporais tipicamente negras, desenvolver a criação de personagens presentes na dramaturgia.
“A gente fazia o trabalho corporal, eu propunha um exercício de voz, e aí o Rodrigo vinha com um texto da autobiografia do Madame propondo um link, o Marcos Fábio trazia um texto poético. Muitas vezes, uma movimentação sugere um improviso vocal, um improviso vocal permite escrever uma cena, e aí gente compõe uma música para aquela melodia inicial. Nosso trabalho foi naturalmente imbricado mesmo, quando a gente via, estava falando a mesma língua”, reflete Bia. “E acho que isso diz muito de onde a gente vem. João, Irene e Titane não separam o que é treinamento corporal, vocal e criação de cena. Tudo é junto”, completa Rodrigo.
Todas as músicas da trilha sonora foram compostas pelo elenco dentro deste processo. “E a música não vem só ilustrar um tema – ela participa da dramaturgia ativamente, é feita em função disso. A posição dos atores em cena também é muito pensada em relação à música e ao que a gente quer causar com aquela música sendo encenada daquele jeito”, explica Rodrigo. A fala negra levada para o texto, a musicalidade negra para a música e a voz e a corporeidade negra para o corpo, como explica Marcos Fábio, inspiraram a formulação de uma linguagem que o grupo quer continuar desenvolvendo. “A gente começou a pensar também teoricamente sobre a pesquisa e a gente tem alguns resultados, um conceito que a gente chama de ‘ação-musical-dramatúrgica’, que é a ideia de pegar as três sintaxes – da música, da palavra e do corpo – e trazê-las para o espetáculo, de forma que tudo se amalgame em uma coisa só”, completa.
A musicalidade vem ao encontro das textualidades que estão presentes no discurso maior, que não apenas contam uma das versões da história de Madame Satã, mas também uma história de segregação, de racismo e de homofobia. “Por causa também do contexto que ele vivia, ele estava num universo negro. Na hora que a gente percebeu que o Madame debate em sua própria narrativa o que a gente queria debater, a gente decidiu: vamos falar da Lapa, da Lapa aqui de Belo Horizonte, da Lapa universal”, afirma Rodrigo. Montado em meio às eleições presidenciais de 2014, o espetáculo faz referências diretas ao discurso homofóbico do candidato Levy Fidelix [!] e às falas e às ações de preconceito e abusos contra negros, pobres e homossexuais no país. “Às vezes isso pode parecer didático, mas a nossa intenção era trazer o discurso à tona mesmo. Para que as pessoas reconhecessem, sim, e soubessem exatamente do que a gente está falando. A gente está falando ali da década de 1950, mas também de hoje, é uma ponte temporal de 60 anos”, defende Bia. “A gente tentou fazer um pouco esse papel, não tem como dissociar arte e política. É um trabalho engajado mesmo”, afirma o dramaturgo Marcos Fábio. “Nós temos voz, cada dia vamos ter mais e queremos cumprir esse papel, sim. Não tem ditadura, não tem censura prévia, a gente pode falar diretamente – e vamos falar”, afirma Bia.
[!] Em debate na TV Record, o candidato do PRTB disse “aparelho excretor não reproduz” e associou homossexualidade a pedofilia, além de dizer que os gays deveriam ser enfrentados. Como resultado de ação movida pela Defensoria Pública do Estado de São Paulo, Levy Fidelix foi condenado a pagar idenização de R$ 1 milhão pelas declarações, a serem revertidos em ações de promoção de igualdade da população LGBTT.
UM CONVITE AO RITUAL
“Por ser um elenco de atores negros, eu acredito que eles apresentam uma corporeidade distinta, eu acho que o corpo tem uma punção diferenciada. Os três que fazem o Madame, os três atores que vão se alternando, se complementam, cada um à sua maneira – tem um Madame totalmente Zé Pelintra [entidade dos cultos afro-brasileiros], vestido num terno branco e chapéu panamá. Esses corpos se transformam em um só corpo, esses discursos se transformam em um só discurso, tudo isso é mediado pela música. É a partir da música que se dá a costura cênica em todo o espetáculo”, afirma o doutor em Estudos Literários e pesquisador da cultura afrodescendente em cena, Marcos Antônio Alexandre.
Através da música, o espectador é convidado pra entrar no jogo, um convite ao ritual que acontece de forma similar em espetáculos como Galanga Chico Rei – com texto e música de Paulo César Pinheiro e direção também de João das Neves, que tem entre os integrantes do seu elenco Rodrigo Jerônimo, Bia Nogueira e Mauricio Tizumba. Na visão do pesquisador, a história do herói negro que comprou sua alforria e ajudou na libertação de muitos negros é contada, ao mesmo tempo, de forma lúdica, mítica e ritualizada. Em cena, elementos são costurados pela musicalidade, pela fé, pela religião, pela tradição, pela gunga, pelo corpo do ator. “Ali se instaura um ritual, inclusive da congada. Você vê momentos em que se instaura o cortejo, momentos que se instauram orações, momentos que se instauram as canções. E é interessante porque, mesmo as pessoas que não participam ou não têm conhecimento de como que é um ritual de congado, quando chegam num espaço de representação, pela musicalidade que está ali, se sente fazendo parte do rito, porque é muito parecido com o ritual cristão”, afirma Marcos Alexandre. Na personagem interpretada por Mauricio Tizumba, destaca ainda a representação de um narrador griô, mediador da cultura oral e contador de histórias. “É a ideia da figura de um ancestral, desse ‘mais velho’ que retém a história e que vai passando essa memória para os outros”, afirma.
MEMÓRIA QUE RESISTE
Idealizado por ativistas do Movimento Negro Unificado em 1993, o surgimento do Teatro Negro e Atitude foi “uma conjuração poética, uma rebelião estética, uma pancada, uma conspiração cênica para que negros e negras dessas Minas Gerais fossem protagonistas da sua história”. O grupo – que se refez e desfez múltiplas vezes ao longo dos anos – sempre utilizou as expressões de cultura africana para a concepção de seus trabalhos. “Era uma pesquisa muito abrangente, precisaria de quatro vidas para pesquisar tudo. Hoje a gente faz um recorte, a gente pesquisa textualidade, corporeidade e musicalidade dentro de três manifestações específicas da cultura afro-brasileira: a capoeira angola, o candomblé de Ketu e o congado. E já é coisa pra caramba, ainda precisamos de três vidas”, brinca Marcus Carvalho, ator que se juntou ao grupo que “resiste há muito tempo” em 2000 e é atualmente o seu diretor artístico [!].
[!] Hoje formado por Marcus Carvalho e Clécio Lima, o Teatro Negro e Atitude não possui atualmente nenhum integrante de sua formação inicial.
A escolha pelo termo musicalidade não é gratuita. “Uma vez, a gente estava numa guarda de congado conversando com a Rainha, a Dona Bela [!], eu disse que estava pesquisando a música do congado e ela falou para mim ‘mas congado não tem música’. E isso mudou a minha vida, como assim congado não tem música? A gente então percebeu que existe uma musicalidade, mas não necessariamente música. E o Candomblé tem um pouco disso também, os ogãs não são músicos, aquilo é uma oração, tanto no sentido de algo que nos liga ao transcendente, quanto da oratória; tem histórias sendo contadas. A cantiga de capoeira, desde a ladainha até os corridos, são narrativas do que está acontecendo ou do que poderia acontecer, é um diálogo acontecendo ali”, afirma.
[!] Rainha da Guarda de Moçambique Nossa Senhora do Rosário e São João Batista, Dona Bela faleceu em fevereiro de 2014, aos 110 anos.
É para “dizer algo” que a musicalidade aparece em cena nos trabalhos do grupo. Bebendo da fonte de Bertolt Brecht, o artista acredita que, na linguagem que desenvolvem, a música é também forma de dar a opinião do ator em cena. Cita, como exemplo, A Viagem de um barquinho, espetáculo criado a partir do texto da escritora carioca Silvia Orthoff. A história de um menino que constrói um barquinho de papel que foge para o mar não tocava diretamente em nenhuma questão racial – com a direção musical de Ricardo Garcia, as canções vêm somar ao texto uma perspectiva sobre os temas de perda, tolerância e amizade.
E Marcus faz questão de frisar: embora a música permeie o teatro que produzem, não se reconhecem como um teatro musical. “Toda vez que a gente ia ao teatro para assistir a trabalhos intitulados como teatro negro tinha sempre muita música. E não era uma música que estava ali para contribuir para o teatro, tomava um pouco o lugar do teatro para tampar talvez uma fragilidade do ator, porque no início era um teatro ainda muito feito por artistas de outras áreas que migravam para o teatro. Mas isso tem mudado também, ultimamente tenho visto espetáculos com atores excelentes. Acho que tem a ver com formação: essa galera agora está vindo do teatro, se você pegar atores que se formaram antes de 2000, vão te falar que não tinha negro na turma deles. Esse boom da gente estar chegando na faculdade chegou também às artes cênicas”, avalia.
Para a atriz e pesquisadora da performance teatral afro-mineira Soraya Martins, a cena belorizontina vem se fortalecendo. “Com muitos mais negros e periféricos entrando na universidade, essa galera está vindo com força, já vem afrocentrada, fazendo ações sensacionais no teatro, na dança, na performance. A gente reclama às vezes [das dificuldades e falta de espaços], mas tem muita gente produzindo, a gente está enegrecendo a cidade”, afirma.
Antes de cursar Letras na Universidade Federal de Minas Gerais, Soraya se formou no Teatro Universitário em 2005. “Apesar de ser ótimo, eu nunca tive uma pauta do teatro negro, me incomodava essa ausência dentro de uma escola de teatro, por mais que tenha sido uma formação essencial e ‘universal’ – mas se não engloba o preto, então como é universal?”, questiona. Foi o encontro com o professor Eduardo de Assis Duarte, coordenador do projeto Literafro (portal dedicado ao estímulo à pesquisa, à divulgação e à reflexão sobre a literatura dos afrodescendentes), que despertou em Soraya o interesse em mergulhar na literatura, na filosofia e no teatro negros. O primeiro verbete que produziu foi sobre Abdias Nascimento, poeta, ator, escritor, dramaturgo, professor e ativista fundador do Teatro Experimental do Negro. Acreditando que seu fazer artístico e acadêmico são inseparáveis do fazer político, estendeu sua pesquisa para a pós-graduação, com a dissertação de mestrado “Identidades Afro-brasileiras: Sortilégio, Anjo Negro e Silêncio” – um estudo (por meio dos textos dramáticos de Abdias do Nascimento, Nelson Rodrigues e da Cia. dos Comuns, respectivamente) do processo de formação das identidades dos afro-brasileiros na e pela cultura negra.
“Quis estudar a formação de identidade por vontade de investigar a minha própria identidade, tem muito de mim no trabalho”, conta Soraya. Parte desse processo foi também o espetáculo Como matar a mãe – 3 atos, montagem da Sofisticada Companhia em que dividiu o palco com Fabiane Aguiar e Léo Kildare Louback. Transitando no limiar entre ficção e realidade, o grupo trouxe para a cena fragmentos da relação com suas próprias mães. “Minha relação com minha mãe passou pelo racismo. Eu sofri racismo de uma mãe negra (apesar de não ser socialmente considerada como tal) – esse racismo é tão perverso que a gente encontra até dentro de uma família negra. Ela cresceu nesse ambiente e, eu queria mostrar que ela também é um construto social, não a colocando como a cretina da história. É tudo muito perverso, ela nunca soube lidar comigo, com meu cabelo, e eu queria colocar isso em cena. É um rito de passagem meu, de exorcizar isso. Isso marca diretamente a autoestima, é um trauma que está ali instaurado – mas a gente pode fazer desse trauma uma memória, uma resistência política”, afirma.
Ao lado do dramaturgo Anderson Feliciano e do ator e pesquisador do teatro negro Evandro Nunes, Soraya trabalha atualmente no espetáculo JOANAJOÃO, com estreia prevista para 2016. “A gente vai falar do abandono da mulher negra, falar do sofrimento, mas também de uma força ancestral – a gente tem essa memória no corpo que ativa a gente para caramba. Sem colocar a mulher naquele lugar que aceita dor, mas tentar ressignificar o lugar da mulher negra”, conta a diretora.
O desejo dos artistas é trabalhar uma dramaturgia da música dentro do espetáculo, explorando as várias possibilidades de linguagem, em que corpo, música e texto são centrais. “A gente está tentando construir uma poética dessa negritude sem necessariamente falar ‘diga não ao racismo!’ – eu acho que isso é super válido também. Construir essa poética negra é tão difícil, eu acho. Porque a gente às vezes fica tão revoltado, querendo fazer uma denúncia, querendo botar pra quebrar. Mas a tentativa é trabalhar isso de uma maneira poética”, afirma. Defende que a presença do negro em cena já é uma resistência, um ato político-artístico que reverbera na voz: “é a gente, de alguma forma, falando da gente”.
Centenas De Povos Pretos
Música do espetáculo Madame Satã (composição Rodrigo Ferrari e Thiago Amador)Centenas de povos pretos
Centenas de povos pretos
Amarrados e presos, guardados,
Jogados ao léo
Mesmo vivendo de baixo
Do mesmo céuEles acham que nós
Não vamos nos superar
Querem nos amarrar e bater
E até nos matar
Não adianta negarCentenas de povos pretos
Condenados pelo respirar,
Sorrir ou vencer
Ou simplesmente serSagazes povos pretos
Que dando pernada no canavial
Aprendeu a viver
E aprendeu surpreenderSão quarenta por cela
De quatro por quatro
Por culpa da pele
Pagando o pato
Nego que não nega
A origem que tem
No curso da história
Tornou-se refémComprar é coisa de preto
Colher é coisa de preto
Estatisticamente provado
Que pra se foder
O primeiro é o pretoPrenderam menino no beco
Sumiram neguinho do gueto
E enquanto isso a população
Vai sendo adestrada
Na rédea do medoPreto comprando e causando fissura
Na mão da polícia neguinho não dura
Depois de dois tiros a mãe de família
Vai sendo arrastada pela viaturaPreto na rua correndo perigo
Depois da chacina de muito amigos
Quero saber quantas mães de família
Vão ter que chorar pelos seus AmarildosCentenas de povos pretos
FICHA TÉCNICA
Dramaturgia: Marcos Fábio de Faria e Rodrigo Jerônimo
Direção Musical: Bia Nogueira
Codireção: Rodrigo Jerônimo
Direção Geral: João das Neves
Elenco: Alysson Salvador, Bia Nogueira, Daniel Guedes, Débora Costa, Denilson Tourinho, Evandro Nunes, Flor Bevacqua, Gabriel Coupe, Guilherme Faustino, Julia Dias, Kátia Aracelle, Laís Lacôrte, Nath Rodrigues, Rodrigo Ferrari, Rodrigo Jerônimo, Thiago Amador