Revista Marimbondo

Corpos estranhos, espaços de resistência

Praça 7. Uma mulher passeia no cruzamento mais movimentado do centro de BH. Ela traja um vestido de “melindrosa”, cujas franjas são compostas por notas verdadeiras de 10 reais. A mulher para, e rapidamente transeuntes se aglomeram ao seu redor. O dinheiro impressiona: as pessoas tiram fotos, especulam o quanto ela carrega no corpo, querem saber se podem pegar as notas. Ela conversa, desafia com perguntas, informa que não veste nada embaixo do vestido. Os risos mal disfarçam a tensão que percorre o lugar. Um rapaz apanha duas notas. Conta, brinca que vai levar embora, depois ensaia uma devolução. A mulher pergunta a ele se vai devolver. Ele hesita e, rapidamente, guarda o dinheiro no bolso. A tensão cresce. Outros ameaçam retirar mais notas. Ela pergunta: “Vai levar? Vai tirar minha roupa?”. Olhares cúpidos observam seu corpo e o curto vestido feito de reais. A tensão aumenta visivelmente. Até que alguém arranca a primeira nota. Em segundos, ela está completamente nua [!].

[!] “Melindrosa”, performance de Ana Luísa Santos, disponível em vídeo.

Manhã chuvosa. Local: em frente a um supermercado onde, dias antes, uma moça havia sido morta ao enfrentar seu assediador. Uma mulher de vestido vermelho estende um lençol branco no chão. Na boca, uma cruz, também vermelha, preenche seu silêncio. Durante quase duas horas, ela vai “bordar”, na brancura do lençol, outras cruzes cor de sangue, acompanhadas de pequenas “lápides” que trazem, cada uma, a memória de brutais assassinatos de mulheres, a maioria morta por seus companheiros. Vítimas e assassinos, das mais variadas idades e classes sociais. Só uma coisa em comum: o ódio e a violência que marcam os crimes. Pessoas se aproximam, observam. Leem o papel que ela estende, escrito ele também com letras vermelhas. Recordam o feminicídio ocorrido ali. Aos poucos, instala-se um clima de luto. Momentos de comoção: mulheres choram. Na cabeça, a dúvida: ela seria uma parente que vela a morte de um ente querido? Ou seria aquilo protesto de algum grupo feminista? [!]

[!] “Espaço do Silêncio”, performance de Nina Caetano, realizada em Ouro Preto/MG. Alguns registros fotográficos da ação – realizada em Ouro Preto, Belo Horizonte e São Carlos – podem ser acessados aqui.

Av. Augusto de Lima, baixo centro, em uma noite qualquer. Um grupo de travestis, mulheres transgênero e outros corpos desviantes se reúne em um bar. Eles trajam roupas de festa e carregam a festa consigo, durante um percurso que irá se estender da Praça Afonso Arinos à Praça da Savassi, com passagem pela Rua Bahia. No caminho, fazem shows em portas de bares, cantam para duas pipoqueiras irmãs, param o trânsito, seduzem seguranças e confundem os passantes que questionam a natureza do evento. Ao serem informados de que é uma festa, ainda resta a pergunta: o que esses corpos comemoram? [!]

[!] “Festa”, intervenção urbana realizada em diálogo por Obscena Agrupamento e Toda Deseo.

Somos foco, festa, fetiche, fichas, bichas, fechação… Uma boate se inaugura. Festa dançante, noite generosa, música boa. Flashes, flechas, gentes que chegam e dançam coletivamente. Coreografia toda deseo, corpos inflamados, show gratuito, o público vibra… Festa, foco, somos fuleiros. Performance é fuleiragem (Medeiros, Bia). Contágio, peste, alegria como revolução e revolta. Re-voltam-se os corpos montados, pintados, pintudos, tesudos, carne viva! Fogueira, noite feiticeira. Os seguranças não sabem se nos contêm ou se nos convêm. VEM! Vem, vem, vem… Paisagem festiva. […]

O trânsito engarrafado, lento e os corpos soltos livres e velozes. Vorazes. Engarrafados com conhaque, agarrados ao espaço aberto e diante do sagrado ajoelhamos para ironizar a instituição do Pecado. Quanto custa o teu pecado? Pecado não existe…. ou se existe é não viver teu desejo, tua obscenidade, teu bailado e ficar ajoelhado esperando esse Deus que na verdade já dança nas ruas, nos corpos anônimos, nos sinais abertos, não fechados…. O tráfego de carros tão devagar, e nós na velocidade dos beijos, carícias, comemorando sei lá o quê, fazendo festa, fresta, fricote, frevo com essa noite que não cansa de gozar e a gente faz amor pra mais amar… O tráfego de carros tão devagar e nele o tráfico de corpos escravos: contidos, contenções, sentados, cansados, com tensões, “vem pra cá, tesões!”– convida a dama da noite. Rumo à Praça da Liberdade? Mas a cada parada uma praça da liberdade e da libertinagem a gente cria! [!]

[!] Trechos de Festa Ambulante e “deseos obscênicos”: encontros na cidade, texto do pesquisador Clóvis Domingos, integrante do Obscena Agrupamento. Disponível aqui.

Cenas como essas têm invadido o cotidiano das cidades, desafiando a compreensão dos transeuntes e transbordando os espaços oficiais e as especificidades de cada linguagem artística. Termos como “cena expandida” [!] surgem na tentativa de nomear, segundo o estudioso Cassiano Quilici, proposições que, como essas, “extrapolam uma área artística específica, borrando as fronteiras que separam teatro, performance, artes visuais, dança, vídeo, etc. Mais que isso, trata-se de fazer transbordar as práticas artísticas para fora dos circuitos e dos sentidos que lhe são habitualmente atribuídos”, articulando-as “com outras formas de saber e fazer” e colocando em xeque “categorias que se encarregavam de situar a arte em um campo cultural nitidamente definido” [!].

[!] A rigor, “campo expandido”, o termo inaugural, foi cunhado pela pesquisadora norte-americana Rosalind Krauss no artigo “Sculpture in the Expanded Field” (1979) e refere-se, inicialmente, à expansão da noção de escultura na arte contemporânea.
____
QUILICI, Cassiano. “O campo expandido: arte como ato filosófico” IN: Revista Sala Preta, v.14, n.2. São Paulo, PPGAC da ECA-USP, 2014, pp. 12-21. Disponível aqui.

É perceptível, também, nessas proposições, a necessidade de intensificar as relações entre arte e vida, de provocar rupturas no fluxo cotidiano, de criar zonas autônomas temporárias, para lembrar a expressão cunhada pelo filósofo anarquista Hakim Bey, ou aquilo que a pesquisadora da cena contemporânea Ileana Diéguez chama de “cenários liminares”, em função da imbricação entre a dimensão estética, muitas vezes de uma experimentalismo radical, e o caráter ético ou político que perpassam essas ações. Nesse sentido, embora a rua não seja seu território exclusivo, parece ser um espaço propício à sua irrupção, por ser habitat de subjetividades diversas, com as quais o artista precisa, obrigatoriamente, negociar formas de ocupação e uso da cidade.

Como afirma o encenador André Carreira [!], propor ações de intervenção na cidade – para além da possibilidade de criar uma ação política ou de manifestar um compromisso radical de investigação artística – implica a perspectiva de considerar “a cidade como um campo simbólico no qual o teatro se instala, inevitavelmente, como elemento de ruptura com os fluxos do cotidiano”. Desse modo, intervir na cidade é criar “um gesto que se politiza porque representa uma ocupação objetiva de um espaço definido por um repertório de usos cotidianos, ao qual o teatro não pertence naturalmente”, afirma.

[!] CARREIRA, André. “Ambiente, fluxo e dramaturgias da cidade: materiais do Teatro de Invasão” IN: O PERCEVEJO on line, periódico do Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas da UNIRIO, vol. 1, fascículo 1, janeiro-junho/2009, p. 3.

Ainda segundo o pesquisador, as experiências de intervenção no ambiente urbano “são falas que formulam hipóteses sobre a cidade, e […] tratam de permanecer como registro na memória dos cidadãos”. Para ele, o diálogo que ocorre entre o acontecimento e o cidadão “representa a abertura, em primeiro lugar, de um espaço imaginário potencial: um novo território da cidade, um convite para o estabelecimento de novos vetores do ambiente”.

Se podemos pensar a rua como um dos espaços privilegiados por essas ações, também é inegável o seu caráter híbrido, que as aproxima do conceito de performance. Para a artista Ana Luisa Santos, autora da primeira cena descrita aqui, “a performance existe num lugar híbrido que coloca a relação arte/vida de uma forma forte” [!]. Marcada ainda pela dimensão do acontecimento, a performance evocaria a presença concreta do performer, o que parece implicar uma noção de risco, tanto para o artista quanto para o espectador (ou talvez fosse melhor dizer: o outro da ação – o transeunte, o cidadão, o passante, pois já não é mais possível falar, aqui, somente em espectador ou público). Desse modo, é possível afirmar que a performance se traduz, fundamentalmente, como uma experiência, pois o espectador-participante (não mais um mero contemplador) – “longe de buscar um sentido para a imagem, deixa-se levar por esta performatividade em ação. Ele performa”, como afirma a pesquisadora Josette Féral [!].

[!] Em matéria de Walter Sebastião para o jornal Estado de Minas. Disponível em: http://bit.ly/1LBshSQ
_____
FÉRAL, Josette. “Por uma poética da performatividade: o teatro performativo”. IN: Revista Sala Preta, v. 8, n.1. São Paulo, PPGAC da ECA-USP, 2008, pp. 197-210.

Nesse sentido, pode-se pensar a experimentação da potência expressiva do corpo, epicentro da performance e já em si exercício de sua política [!], como uma provocação – até mesmo uma quase exigência – à ação do espectador, demandando dele um posicionamento, inclusive no plano ético, como evidencia Melindrosa, de Ana Luísa Santos, no jogo de negociação que ela estabelece com os transeuntes ao longo da ação.

[!] Em oposição ao pensamento filosófico tradicional que associa politicidade ao caráter coletivo do corpo, à noção de “corpo social”.

Para a performer Eleonora Fabião [!], as práticas performáticas têm justamente a função de atuar como “complicadores culturais”, expandindo “a ideia do que seja ação artística e “artisticidade” da ação, bem como a ideia de corpo e “politicidade” do corpo [!]:

“Esta é, a meu ver, a força da performance: turbinar a relação do cidadão com a pólis; do agente histórico com seu contexto; do vivente com o tempo, o espaço, o corpo, o outro, o consigo. Esta é a potência da performance: desabituar, des-mecanizar, escovar a contra-pelo. Trata-se de buscar maneiras alternativas de lidar com o estabelecido, de experimentar estados psicofísicos alterados, de criar situações que disseminam dissonâncias diversas: dissonâncias de ordem econômica, emocional, biológica, ideológica, psicológica, espiritual, identitária, sexual, política, estética, social, racial…”

[!] FABIÃO, Eleonora. “Performance e Teatro: poéticas e políticas da cena contemporânea”. IN: Revista Sala Preta, v.8, n.1. São Paulo, PPGAC da ECA-USP, 2008, pp. 237-238. Disponível aqui.
____
Numa ação microscópica que lembra muito o trabalho do PORO, dupla de artistas visuais conhecidos, justamente, pelas intervenções que realizam na paisagem urbana.

Nesse sentido, a performance vai, muitas vezes, alargar as fronteiras de sua ação política e flertar diretamente com os movimentos sociais, performatizando-os. É possível observar, atualmente, uma estreita relação da performance com o ativismo, do movimento negro ao movimento feminista. Basta citar os últimos atos públicos realizados por movimentos feministas em Belo Horizonte em datas emblemáticas como o 8 de março.

Lembro, por exemplo, que, durante meses, as praças e ruas do centro da cidade guardaram rastros de uma intervenção urbana realizada pelas feministas, que consistiu em alterar os nomes dos logradouros públicos, trocando-os por nomes de famosas ativistas, ao afixar adesivos sobre as placas oficiais que imitavam seu layout [!]. Na Praça da Estação, podia-se ler, por exemplo: “Praça Olga Benário, desde 8 de março de 2013”. Ou, ainda, a ação da ativista negra Veridiane Vidal que, na Marcha das Mulheres Negras, realizada em maio de 2015, postou-se nua em um carrinho de compras, cercada de carnes de animais, ressoando, nessa imagem, os versos de “A Carne”, música-protesto entoada por Elza Soares: “a carne mais barata do mercado é a carne negra…”.

[!] Numa ação microscópica que lembra muito o trabalho do PORO, dupla de artistas visuais conhecidos, justamente, pelas intervenções que realizam na paisagem urbana.

Não que essa aproximação entre a arte contemporânea e o feminismo seja uma novidade. Quem não se recorda do famoso cartaz de Barbara Kruger (1989) – “Seu corpo é um campo de batalha” – que, subvertendo a linguagem da propaganda, manifestou seu apoio às passeatas em prol do direito ao aborto com dizeres que, até hoje, são palavras de ordem do movimento feminista? Ou, ainda, o alcance da ideia expressa em “O Pessoal é Político” – título do texto de Carol Hanisch (1970), integrante do Women’s Liberation Movement –, que extrapolou os limites do movimento social e influenciou, como defende a artista feminista Lúcia Romano [!], “a criação artística, ao abrir caminho para a inclusão do chamado depoimento pessoal na obra de arte de uma maneira que, mesmo entre as criadoras de vanguarda, era ainda pouco praticado”.

[!] ROMANO, Lúcia. Performance feminista e performatividade de gênero: relato da oficina mulheres performers, texto disponível aqui.

Configurando-se como um possível campo para a nítida colocação/tomada de posição de corpos políticos marcados pela diferença – o corpo do negro, da mulher, do transgênero, do gordo, do amputado e tantos, tantos outros corpos possíveis! –, a performance vem afirmando sua vocação contestatória, possibilitando a construção de espaço de resistência, seja na constituição de um corpo coletivo ou na individuação das marcas de opressão no corpo, que performa seu discurso e inscreve seu gesto-corpo no espaço, ou melhor, inscreve com o corpo seu gesto político no espaço.