Revista Marimbondo

Corpos que (se) importam, corpos que se implicam

Inaugurado em 1984, o teatro João Ceschiatti [!] foi batizado em homenagem a um importante encenador mineiro, montador de dezenas de peças com operários do SESI nos anos 1940 e 1950, entre tragédias gregas, clássicos da dramaturgia europeia e textos de autores nacionais. Após ser demitido, João resistiu nos anos seguintes (e até falecer) transformando sua casa, às sextas e aos sábados, em restaurante aberto somente a amigos do meio teatral local e a ícones nacionais em temporadas pela cidade. Talvez como uma reminiscência, quem sabe como memória (já que, para se lembrar, é preciso ter esquecido), numa noite de agosto de 2015, o espaço que leva seu nome foi tomado por uma pulsão contra-hegemônica.

[!] Em formato de semiarena e com capacidade para 148 lugares, o Teatro João Ceschiatti integra o Palácio das Artes, um dos mais tradicionais e antigos complexos culturais do Estado.

De uma pequena caixa de som posicionada num dos cantos do palco e ligada a um computador portátil, podia-se ouvir “Ela é rameira”, da Banda Djavu; “Não foi Cabral”, da MC Carol; “Disseram que eu voltei americanizada”, na voz de Carmen Miranda; além de trechos de canções de cantoras como Valesca Popozuda, Elza Soares e Clara Nunes. De microfone em mãos, a cada entreato, a atriz Ju Abreu, do coletivo Toda Deseo, convocava a plateia a tomar o palco e fazer parte de No soy un maricón – o espetáculo-festa!. David Junio, que havia entrado pela primeira vez naquele espaço, foi um dos que se sentiu convidado e dançou intensamente. “Teatro clássico tem aquela coisa de você nunca poder estar ali, você meio que estende a mão, mas nunca consegue se colocar naquele lugar. Não sei explicar direito, mas senti que eu cabia ali”, diz David que, desde o início do ano, estuda teatro no Programa Valores de Minas. A experiência do João Ceschiatti ainda reverbera. Com a ameaça de interrupção do Programa, ele planeja “fazer algo político”. “Quero convocar meus colegas para uma releitura da forma de fazer desse espetáculo, quero poder colocar as pessoas dentro da performance para que elas sintam o quanto o teatro pode transformar a gente”, diz.

A forma a que ele se refere – ou a escolha por um “não formato festa”, como afirma um dos integrantes do coletivo Toda Deseo, Rafael Bacelar – veio do desejo de que as pessoas não ficassem sentadas esperando para vê-los. “E porque a gente entendeu que, na disputa por espaço, não teríamos as mesmas portas abertas que grupos de teatro maiores. Queríamos ocupar de uma outra forma, percorrer outros caminhos”, explica Rafael. Entre as pesquisas do grupo, estava o processo da festa. “Buscamos entendê-la como uma possibilidade de construção artística. Pensar uma forma em que o público pudesse estar com o corpo ativo, com corpo em performance, receptivo e transformador. Apesar de ser um espetáculo extremamente coreografado, cabe também improviso, tem o lugar dessa troca, tem espaço para outros corpos”, afirma.

Já apresentado em diferentes espaços e eventos da cidade, No soy um maricón foi inicialmente concebido, em 2013, como trabalho de conclusão do curso de Teatro de Rafael. Nos intervalos das aulas na UFMG, ele, Ju Abreu, David Maurity, Igor Leal, Ronny Stevens e Will Soares se reuniam para desenvolver pesquisas referenciadas no campo discursivo queer [!] que pudessem se desdobrar no espetáculo de formatura. Com formações diversas – em áreas como Dança, Pedagogia, Letras, Psicologia e Teatro –, cada um compartilhava suas referências e histórias pessoais, questionamentos, formas de fazer e pensar teatro numa espécie de “assembleia criativa”. Do encontro com os estudos sobre as performatividades de gênero [!] – compartilhados especialmente a partir dos estudos realizados no mestrado [!] de Igor –, surgiram muitas inquietações. “Se gênero não é natural, se somos todos construídos, seria possível a construção da figura das travestis mais próxima do processo da performance teatral?”, se pergunta(va) Rafael. “Além disso, já me incomodava o apagamento do corpo afeminado dentro do próprio teatro, a máxima do physique du rôle [!], a ausência da figura da travesti com suas histórias, como alguém que produz experiências cênicas e artísticas”, diz.

[!] O termo queer, inicialmente usado de forma pejorativa, foi posteriormente reapropriado por certos teóricos gays e lésbicas com o objetivo de colocar em xeque a oposição binária entre heterossexual e homossexual, destruindo o essencialismo do gênero e da identidade sexual e substituindo com identidades que são contingentes na negociação cultural e social.
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Conceito inicialmente desenvolvido por Judith Butler, em seu livro Problemas de Gênero, de 1989, em que aponta o gênero como uma construção discursiva, e não algo biológico.
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Dissertação de mestrado intitulada Estratégias queers para a encenação contemporânea – um olhar sobre Luiz Antônio Gabriela.
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Expressão que diz de uma aparência física que, supostamente, se mostra adequada a um papel ou função exercida.

No espetáculo apresentado no João Ceschiatti, dentro da Mostra InMinas [!], o grupo – desde 2014 sem Igor e Will, atualmente também com Simon Oliveira, Victor Pedrosa e participações especiais de Fabio Schmidt [!] – trouxe à cena uma leitura acerca do universo de muitas travestis e mulheres transexuais brasileiras. Entre o humor, o melodrama e uma dose de exagero, convivem o realce às violências cotidianas físicas, verbais e simbólicas e o grito por direitos e visibilidade – feito em manifesto lido ao final do espetáculo pela atriz Ju Abreu. Costurados pelas músicas dos entreatos, os quatro “pocket shows fechativos” têm os atores “montados” – com dispositivos de salto, maquiagem, peruca – a executar coreografias e dublagens, em meio a referências à cultura gay e à cultura pop, homenagens a divas e ícones da música nacional e internacional e questionamentos à realpolitik contemporânea.

[!] Em agosto de 2015, a Mostra InMinas reuniu 32 grupos de teatro do interior e da capital do estado, e contou com espetáculos, atividades formativas, seminários e debates com representantes do poder público e da sociedade civil. Realizada pelos próprios artistas, ela almejou abrir mais espaços e visibilidade aos trabalhos desenvolvidos, fortalecendo redes de relacionamentos entre os grupos.
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Também integram a Toda Deseo a produtora Érica Hoffman e o iluminador Akner Gustavson.

Ainda que o grupo seja convidado para mostras e espaços teatrais, David lembra que há uma luta histórica por reconhecimento. “Ainda hoje se luta para que alguns trabalhos sejam considerados arte. O trabalho de drag[queen] ou aquele em que se tem a figura do afeminado, da bicha, da travesti, todos eles foram e ainda são excluídos do campo teatral, das antologias, da própria história do teatro. É como se não tivesse existido Dzi Croquettes, Vivencial Diversiones ou nenhum outro, ontem e hoje”, aponta.

O apagamento desses corpos não se dá apenas na construção da memória, ressalta Igor que, além de ator, atua desde 2007 como pesquisador-ativista [!]. Dentro dos espaços de formação, já existe uma interdição nos gestos, na voz, no corpo. “A gente ouve muito ‘corta isso, segura isso!’, ‘engrossa a voz’, ‘olha, assim você não vai conseguir papel!’”, diz. “No processo do meu espetáculo de formatura no Cefar [!] [Delírio em terra quente, de 2010, coordenado pelo Grupo Espanca!] tínhamos de levar arquétipos latino-americanos e eu levei uma mulher trans. Felizmente, com o Espanca isso foi possível, as personagens podiam ter sexualidades”, lembra. Do encontro com grupo, veio mais tarde o convite feito pelo ator Gustavo Bones para que Igor integrasse a Gangue das Bonecas, plataforma online para discutir sexualidade e gênero na rua e uma das atividades do coletivo Paisagens Poéticas (veja mais aqui). “Estava me formando ao mesmo tempo em Psicologia e em Teatro e aceitei fazer mais esse trabalho, criar intervenção urbana com bicha moradora de rua. Foi das experiências mais fodas e foi surpreendente para mim”, conta.

[!] Em 2007, após um trote para calouros da Escola de Engenharia da UFMG entoar pelo Campus “1,2,3,4, na Fafich só tem viado/ 4,3,2,1, eles dão para qualquer um” e “Êêêê, tem bicha querendo aparecer/ e vai morrer!”, alguns estudantes – entre eles, Igor Leal – se mobilizaram para criar o Grupo Universitário em Defesa da Diversidade Sexual (GUDDS!). www.facebook.com/guddsmg. Em 2008/2009, foi bolsista do Núcleo de Direitos Humanos e Cidadania LGBT da UFMG (NUH). www.facebook.com/nuhcidadania. De lá para cá, desenvolve pesquisas e mantém grupos de estudos, vinculados ou não à universidade.
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Centro de Formação Artística do Palácio das Artes – Cefar

Em 2014, Igor criou com Will (que, além de ator, possui formação em dança) a cena-espetáculo-performance Não conte comigo para proliferar mentiras, apresentada inicialmente dentro do Festival de Cenas Curtas do Galpão Cine Horto [!] daquele ano e dirigido por Alexandre de Sena. Ao som da música “O homem na estrada”, dos Racionais MC’s, dublada por Will, dispositivos socialmente identificados como femininos e masculinos (batom, bermuda, vestido de gala, peruca, chinelo, entre outros) são sobrepostos/embaralhados, criando interseções identitárias e de representação e propondo novos arranjos entre as categorias de homem/mulher, pobre/rico, branco/negro.

[!] A cena não foi uma das mais votadas pelo público, mas foi a escolhida pelo júri. Segundo Leonardo Lessa, membro da comissão avaliadora, “a escolha da quinta cena chamou a atenção pela atualidade do tema e a linguagem propostas que alia o universo queer com o rap”.

O desejo de borrar fronteiras vem já desde a infância de Will. Ainda criança, ele ouvia os discos do irmão dos Racionais e do Facção Central em meio às músicas das Chiquititas, Sandy & Junior e clipes da TV que gravava para depois dublar. “Botava saia na cabeça e falava que era cabelo, brincava com as roupas que tinha em casa, sapato, maquiagem, e ia fazer shows com as vizinhas na garagem da casa delas. Foi lá no meu bairro, no Santa Cruz, que eu estreei com sete anos”, conta. Já no curso de Dança na UFMG e de Teatro no Cefar, sentia o ar mais rarefeito para explorar o corpo em suas possibilidades não binárias. “Tentava apresentar propostas de um corpo modificado, que não é nem de homem nem mulher, mas tinha sempre os quadradinhos de dança moderna assim, dança contemporânea assado, ou um professor de teatro que propunha um trabalho sempre em cima de uma imagem já definida”, revela.

Atualmente, ele integra a Cia. Espaço Preto, que se dedica aos estudos nos “campos da Cultura Negra e da Arte Marginal”. No grupo, diz encontrar lugar para suas propostas que questionam os binarismos corpo de mulher/corpo de homem. “Chego com o corpo transformado, em algumas cenas deixo as tecnologias de gênero expostas, tiro o peito de plástico, ajeito pinto”, conta. Na Mostra InMinas, em que o grupo apresentou o espetáculo O Grito do Outro – O Grito meu!, suas questões conviviam com os questionamentos primordiais da peça: “Onde estão os negros? Você os vê? Você os ouve? Quem é negro?”.


Limiar entre o riso e a violência

Assim como em edições passadas da Campanha de Popularização do Teatro de Belo Horizonte, muitos espetáculos de comédia com atores “montados” marcaram presença na temporada 2015, como O Nome Dela É ValdemarMeu Tio é TiaUma Empregada Quase PerfeitaAs Monas Lisas e As Barbeiras. Este último esteve entre um dos mais bem sucedidos de público entre as quase 200 peças em cartaz. No papel de Valéria, uma das sócias que dividem o salão de beleza, estava Will, em sua estreia ao lado das drags Kayete e Marilu Barraginha, interpretadas respectivamente pelos atores Caio Fernandes e Rogério Viola. Kayete é um sucesso estrondoso também fora dos palcos, comandando programas de rádio, TV e apresentações de eventos. E, assim como ela, vários artistas “montados” possuem um trabalho de enorme aceitação e apelo popular na cidade.

Mas se Belo Horizonte tem riso frouxo quando se trata de corpos em cena travestidos de mulher, do que rimos, afinal, em alguns desses espetáculos? Igor, que em 2009 realizou junto com Tomaz Yanomami uma extensa pesquisa com atores e produtores de comédias da Campanha de Popularização do Teatro daquele ano, faz alguns apontamentos: “Geralmente era o lugar dramatúrgico que denunciava o preconceito. Acho que ainda precisa existir uma peça com as mesmas linguagens da campanha, mas que desse uma atualizada, porque muitas das vezes é preconceito e é desatualizado”, avalia. Mas existiria um caminho? “Ao mesmo tempo, o queer me mostrou que este olhar crítico é bem-vindo sim, mas que é preciso tomar cuidado, porque esses apontamentos podem indicar que existe um suposto ideal da sexualidade na arte. E é isso que a gente tem de romper. A minha prática sexual não pode ser elemento de representatividade, não existe essencialismo nenhum”, pondera.

E se há uma guerrilha contra pensamentos e experiências, como afirma Paul B. Preciado, que nenhum território seja negligenciado. “É lá também que a gente tem de estar. É lá que o povo vai, e muitos deles acham que gay ou mulher é assim ou assado. Eu sempre pensava numa resposta, com corpo ou com texto, numa forma de reagir para o público, de fazer apontamentos como ator, de olhar para aquele que ria, tentar alargar, tensionar, sem abrir mão desses espaços”, afirma Will. “Outra coisa maravilhosa de ter feito esta temporada, de conviver com a Kayete, foi acessar outros lugares. Me aproximou ainda mais de uma produção artística na noite, shows em boates, em saunas, um universo totalmente diferente daquele que eu ocupava antes, que era calourada de faculdade, prêmio de direitos humanos, etc.”, completa.

Esta produção artística riquíssima da noite belorizontina muitas vezes encontra-se apartada de alguns públicos, o que Igor acredita ser “um tiro no pé”. “Me parece que hoje há uma legitimação cultural que desconhece artistas históricos da cidade. O reconhecimento radical da arte drag está nesses espaços da noite, no Estação 2000, na GIS! É muito sintomático que muitas pessoas que frequentam universos afins desconheçam esta cena. Às vezes se conhecem todas as ganhadoras da RuPaul [reality show norte-americano de grande sucesso de disputa entre drag queens], mas não se reconhece o trabalho feito aqui. Conheçam as drags locais!”, provoca Igor.

Shantayyou stay!        

Ele veio de Brasília para Belo Horizonte convidado a ensinar coreografias para dançarinas de algumas boates de público exclusivamente masculino. Com dedicação primordialmente aos finais de semana, tinha tempo livre no restante dos dias para outras atividades. Mas, apesar de possuir formação de ator, por aqui nada de conseguir papéis em espetáculos de teatro. “Era aprovado em diversos testes de elenco, mas quando eu dizia que também tinha um trabalho de transformista, eu era dispensado”, conta Carlinhos Brasil, artista há quase vinte anos em atividade [!] na capital mineira. Desde então, ele faz apresentações em boates, saunas, faculdades, churrascarias, festas para empresas, despedidas de solteiro, festas fechadas de jogadores de futebol; seu universo é vasto.

[!] Há 18 anos, Carlinhos é um dos apresentadores oficiais da Parada do Orgulho LGBT em Belo Horizonte e, há 11, da de Contagem.

Até conseguir seu lugar ao sol, teve de colocar a cara e o corpo na disputa por reconhecimento, vencendo desafio após desafio. “Eu sempre montei meus próprios espetáculos, com produção de figurino, escolha da música, dos gestos, a coreografia, tudo. E nunca abri mão de estar em todos os espaços que me abriam portas. Junto de mim, vieram muitas, Kayete, Kayla Brizard e tantas outras. Fomos nós mesmos abrindo espaço para a nossa arte”, diz. Como muitos e muitas artistas, Carlinhos integra elencos de comédias na Campanha de Popularização do Teatro há alguns anos; em 2015, esteve em cinco delas. “Faço quase todo ano. Quem me deu a primeira oportunidade foi o [ator e diretor] Carl Schumacher, estreei com Eva e Adão, lembra.

Mas é no trabalho solo em que Carlinhos mais se destaca. Também empreendedor, ele produz os próprios DVDs e os vende ao término das apresentações ao preço de vinte reais. Um quarto do valor é doado ao tratamento de soropositivos do Hospital da Baleia. Carlinhos Brasil – Brasileirinho tem três volumes, cada um com repertório diferente, primordialmente nacional. “Música em português é mais direta, todos entendem o que você diz, os gestos fazem sentido na cena, naquilo que você está dizendo”, acredita. Para a produção, Carlinhos leva uma equipe pequena para um único dia de gravação: o diretor e operador de câmera, seu amigo Beto Sartori, alguém para segurar o microsystem à pilha para que possa escutar as músicas que dubla e um terceiro para ajudar na produção, “para evitar que passem na frente da câmera ou me agridam”. Entre os cenários, Cemitério do Bonfim, Ceasa, plataforma do metrô, Praça do Papa (neste último, era realizado um evento evangélico ao fundo). Em Carlinhos Brasil – Brasileirinho – Vol.2, faz uma bela homenagem aos amigos e amigas que já se foram. Com vestido longo e estola branca, dubla a canção “Encontros e Despedidas”, na voz de Maria Rita, na estação do Trem da Vale em Ouro Preto. Os nomes vão aos poucos aparecendo na tela. “Queria agradecer aos artistas com quem convivi e aprendi tanto, mas que não puderam continuar sua caminhada”.

Apesar de “garantir maior aceitação hoje”, o aumento recente da visibilidade à arte de quem se monta afetou pouco seu trabalho, ele diz. “Talvez porque minha proposta não se encaixe, não é na linha fechação, bate-cabelo, tem um pouco de teatro, tem humor”. Em um de seus trabalhos, Carlinhos entra de cara limpa, vestido com roupas masculinas, ao som de “Espelho de Camarim”, de Lucinha Santos. Vai tirando as peças de roupa que, por baixo, se revelam roupas femininas, enquanto se maquia, coloca peruca e salto. Após a dublagem, se desmonta completamente ainda em cena. A terceira camada de roupas se revela masculina. Ao som de “Fascinação”, na voz de Elis Regina, ele deixa o palco enquanto carrega consigo todos os adereços. “Não tenho nome de mulher, muitas vezes tiro a peruca em cena, mantenho a minha voz como ela é. Não digo que sou drag ou transformista. Eu sou um artista”.

O grito de “A carne mais barata do mercado”

Cristal Lopez também faz performances e shows no circuito de boates e casas noturnas, mas, diferentemente de homens que se apresentam “montados”, Cristal é uma mulher, performer e dançarina. Na infância, gostava de ver a mãe dançar, seja em casa ou de soslaio nas coxias. Com “medo de ser comparada a ela”, por muito tempo evitou se permitir ser artista também.

Antes de superar o signo materno, Cristal teve que lutar para conquistar sua própria identidade. “Com 12 anos, eu já entendia que era uma mulher trans. Comecei a usar vestimentas e a construir a Cristal. Ainda assim, eu cresci sem referências na escola. Lá eu tinha medo de assumir minha negritude, meu cabelo, medo de ser diminuída. Era sempre a única mulher trans e a única negra”, conta. No Ensino Médio, pediu para trocar a escola particular por uma estadual em busca de mais diversidade sexual e étnica. Já um pouco mais confortável e segura no reconhecimento de si mesma, aos 16 anos entrou, pela primeira vez, em uma boate. “Vi a Rubia Salvation, uma drag maravilhosa no palco, entendi que era isso que eu queria fazer, era ali onde eu queria estar”. Ao ver outra artista em cena, “minha chama artística se acendeu”, ela diz.

Para sua própria construção artística, fez pesquisa em videoclipes da Corona, Madonna, apresentações da Tina Turner, Sandra de Sá, referências latino-americanas como Frida Kahlo e Mercedes Sosa. Mais tarde, Atenas, Afrodite, Oxum, Nanã; “sou filha de Iansã”, revela. A convite de um professor, fez sua estreia em um evento cultural com enfoque étnico organizado no seu antigo colégio. “Voltei para onde um dia eu não me senti acolhida, agora com figurino, coreografia e um vinil da Alcione. Ali no palco eu me encontrei”, conta Cristal.

Em 2014, em evento comemorativo ao aniversário da Revista Raça, ela fez sua primeira apresentação de rua, na Praça Sete, vestindo um turbante, ao som de “Morena de Angola”, de Clara Nunes. Na segunda vez em frente a uma multidão, escolheu “Freedom”, na voz do cantor inglês George Michael. “Ainda precisamos alcançar liberdade plena, poder dublar homem e mulher, o que a gente quiser. Arte drag não tem gênero, é uma performance”, reivindica. Uma de suas apresentações mais marcantes é ao som de “A carne”, de Elza Soares. “A carne mais barata do mercado é a carne negra / A carne mais barata do mercado é a carne negra / A carne mais barata do mercado é a carne negra”; o refrão repetido e repetido ganha outros contornos e potências no corpo e presença de Cristal.

Mas, mesmo que ela conte com a admiração e reconhecimento como artista, afirma ainda ter de lidar com a reação nem sempre respeitosa do público. “Após os shows, algumas pessoas vêm me dizer ‘você estava incrível’ e já se sentem confortáveis em pegar no meu corpo, no meu cabelo. Fazem a íntima e ainda te fazem perguntas que talvez não tivessem coragem de fazer a outras pessoas que não conhecem tão bem”, revela.

Cristal apresenta-se em boates, faculdades, eventos e festas na rua e transita por diferentes territórios, muitos deles de grande visibilidade. Em agosto de 2015, sofreu ameaças e ataques racistas e transfóbicos pela internet (no momento, sob investigação da polícia), nos quais eram mencionados alguns dos espaços onde ela costuma performar. “Cheguei a me perguntar se seria capaz de continuar. Mas não aceito me apagarem, não! Se na vida ando com arma apontada pra cabeça, no palco me sinto segura, desbravo mundos, construo outros mundos. Abaixo as minhas armas, entro despida e com muita coragem. Porque há que se ter coragem! No palco está a essência de toda a construção da Cristal. No palco as pessoas te escutam, nele eu existo de forma plena”, diz.


Transbordar pela cidade

Os cães ladram e a caravana passa, diz o provérbio popular. Apesar das ameaças e violências – físicas e simbólicas – sofridas dentro e fora da internet, muitas performances queer têm, cada vez mais, se estendido dos palcos e ambientes fechados para outros espaços da cidade. Muitos desses corpos, por vezes à sombra, à meia-luz, têm botado a cara no sol, encontrando outros afetos e lugares. Uma dessas performances mais recentes é o Campeonato InterDRAG de Gaymada, organizado pelo coletivo Toda Deseo e em cujos intervalos Cristal também se apresenta. Um convite aberto a quaisquer participantes – sem restrição etária, de identidade de gênero ou condição sexual – a irem “montados” para praças, parques e ruas e se permitirem brincar.

David Maurity cita o documentário Tarja Branca – a Revolução que faltava, de Cacau Rhoden, que levanta a hipótese de que a brincadeira anda em crise, seja entre crianças ou adultos. “A Gaymada é nosso convite a retomar esse espírito de liberdade até então muito presente da infância, de nos expressar livremente com nossos corpos, da forma que a gente quiser, como a gente se sentir bem”, afirma. Em alguns dos convites para o evento, feitos sempre via Facebook, há os dizeres: “VAMOS NOS MONTAR, BRASIL! VAMOS PRA RUA! Vamos sair dos nossos banheiros, salas ou quartos e levar toda a maquilage. Que tal mostrarmos AOS CARETAS, HOMOFÓBICOS, LESBOFÓBICOS, TRANSFÓBICOS essa magia maravilhosa da montação em plena luz do dia?”.

Desde sua 1ª edição [!], realizada na Praça Floriano Peixoto em junho de 2015, cresce o número de participantes e de público, assim como os encontros com as muitas cidades que chamamos de Belo Horizonte. “Eu só queria dizer sobre a emoção e a alegria que foi observar as famílias, os cachorros, as crianças, as bichas, as travestis, ozomens, os garis e até os passageiros dos ônibus! Tantos universos e ideologias distintas se tocando e se divertindo. Sem ofensas ou preconceito. Um momento sem igual na história de cada cidadão deslocado e obrigado a conhecer e sentir de perto o poder de ser feliz. Essa força TRANS-forma! Viva a gaymada”, declarou o fotógrafo e artista visual Pedro Saldanha sobre a experiência.

[!] Além da 1ª edição, realizada junto com o coletivo Chá das Prima, na Praça Floriano Peixoto, o Campeonato InterDRAG de Gaymada já ocorreu no Parque Municipal (dentro da programação oficial da Virada Cultural 2015), na Praia da Estação e, no Rio de Janeiro, na Cinelândia, dentro da Maratona Cultural Cidade Olímpica, a convite do MinC e da Funarte.

Em agosto de 2015, o Bloco da Bicicletinha, agrupamento de cicloativistas que periodicamente faz rolês pela cidade, experimentou uma edição especial “Drag Race da Bicicletinha”, nome-referência ao reality show RuPaul’s Drag Race. O chamamento para se montarem – “na make e na bike” – deu certo e, do trajeto da Praça da Liberdade até a Avenida dos Andradas, era possível ver várias drag queens e kings sobre duas rodas. Pelo caminho, percursos de afetos e fricções e, para muito participantes, uma experiência reveladora. “Foi impressionante perceber como a sociedade em geral tem um desrespeito com quem se veste assim. Foram vários os momentos em que eu ficava pra trás do bloco e pessoas começavam a me xingar, chamar de ‘gostosa’ e coisas do tipo, tudo gratuitamente. Eu me considero uma pessoa que está tendo cada vez mais consciência do machismo e aprendendo a lidar com ele, mas foi sentindo na pele que percebi que ainda falta muito para que mulheres, trans, drags, homossexuais, etc., sejam tratadas de forma respeitosa pela sociedade”, declarou um dos participantes, Bruno Figueiredo.

 

Borrando as margens

Como corpos fluidos que se movimentam, se transformam e podem encontrar brechas, em algum momento, as experiências queer de Belo Horizontetambém passaram a compartilhar lugares mais tradicionais e/ou institucionalizados. Grupos de teatro e instituições contribuem para o alargamento dos espaços onde essas performances se realizam, antes relegadas, muitas vezes, a circuitos restritos. Queer está em qualquer lugar.

Em março de 2015, o Teatro Espanca promoveu “A Ocupação: Arte Viada no Centro!” com a proposta de reunir experiências e estratégias queers já existentes na cidade. Dentro dessa ocupação, foi realizada a Ocupação Afazeres Queers, idealizada e coordenada por Alexandre de Sena, Igor Leal e Will Soares, integrantes do coletivo Beijo no Seu Preconceito [!]. Com todas as atividades gratuitas, ela reuniu teatro, shows de drags, exibição de filme, performances, lançamento do videoclipe DizTrava [!], exposição fotográfica,debates e, também, um grupo de estudos, buscando “um encontro entre público, artistas, pesquisadorxs, ativistas e acadêmicxs”.

[!] Agrupamento de artistas mobilizados pelo “respeito à diversidade de gênero”. Conheça mais em www.facebook.com/Beijonoseupreconceito
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Gravado no Morro do Papagaio – com letra de Will Soares, pesquisa de Gabriel Freitas e direção de Alexandre de Sena e Mirela Persichini – o rap enfoca o cotidiano de travestis nas periferias da cidade. O vídeo pode ser visto aqui.

Em setembro de 2015, o mesmo coletivo foi convidado a integrar a programação oficial da Virada Cultural com a Kombi Queen Queer, um “desfile de práticas performativas que desconstroem as ideias hegemônicas de gênero, sexo e beleza”. Chamada também de Kombi Viada pelas pessoas na rua, o veículo – ele também montado – percorreu o Centro de Belo Horizonte criando uma confusão por onde passava. Uma experiência de alteridade. ‘O que é aquilo? Só tem viado? É uma performance?’ A cada parada, artistas desfilavam-performavam ao som de músicas, projeções de luz e troca de roupas e adereços. “Um desfile de carne que não vendia; trocava. Uma delinquência visual, delinquência sexual”, defende Igor.

Também em setembro, o Teatro Marília abrigou a “Mostra Novos Coletivos – Uma experiência de ocupação”, com espetáculos e debates. Como parte dela, foi realizado o “Seminário Artes, Gêneros e Sexualidades”, com conversa entre atores e público, ensaios abertos e lançamento da publicação-zine O QUE VOCÊ QUEER [!], das artistas Ana Luisa Santos e Fernanda Branco Polse. Uma das convidadas ao debate, a dramaturga Gabriela Figueiredo, compartilhou algumas de suas inquietações: “Já ouvi que ‘temos que destruir alguns corpos’ como uma política transgressora. Mas eu mesma comecei a me questionar; os corpos existem e não quero a destruição deles. Principalmente quando se fala de arte e gênero, a maior transgressão que se pode conseguir é fazer com que as pessoas se repensem. E eu não digo ‘não ser homem’ ou ‘não ser mulher’, mas as formas de ser homem e as formas de ser mulher. Quero conseguir fazer, através da minha prática artística, das minhas práticas estéticas, que as pessoas (ou pelo menos eu mesma) repensem o que é ser mulher, encontrem outras formas de experimentar ser mulher. Busco pensar mais essa zona de transgressão do que propor formas para o corpo do outro”.

[!] Conheça mais em www.oquevocequeer.com

E, encerrando o mês, foi a vez de o Galpão Cine Horto receber a TransResidência Experimento Queer, parte da programação do 16º Festival de Cenas Curtas, que adotou o slogan “Diversos sempre fomos” naquela edição. A proposta da residência, concebida por Ana Luisa Santos, Fernanda Branco Polse, Guilherme Morais e Igor Leal, foi feita a partir de uma convocatória aberta a qualquer pessoa artista ou não, ativista ou não, interessada em experimentar, conhecer e discutir sobre arte, política e gênero. O convite deixava claro que “o principal objetivo da transresidência não existe. Não o principal, porque são vários, somos vários, sem hierarquização, um exercício de abertura entre os integrantes e seus espaços”, e convidava os participantes a gerar dispositivos de afetações críticas entre arte e ativismo, “explorando estruturas alternativas nas artes visuais e cênicas, ampliando toda e qualquer tipo de categoria”.

Durante uma semana, dezessete residentes realizaram experimentos – incluindo exercícios performáticos durante os entreatos do Cenas Curtas –, encontros-práticas, apresentações, performances e reflexões, tendo a participação do artista plástico convidado Arthur Camargos, que produziu um corredor-mural, em exibição durante os dias de mostra competitiva. Em parceria com o site Nada Errado, uma série de debates e conversas com artistas convidados abriu a transresidência.


‘Mara o quê? Vilhosa!’

Na Coronel Fabriciano do início dos anos 1990 ainda sem escolas de teatro, foi uma academia (a Terpsícore) que acolheu Guilherme Morais, “onde tinha tudo, ballet, moderno, jazz, sapateado, contemporâneo, dança de rua”. Se as instituições de Ensino Fundamental não davam conta de suas inquietações/proposições – como a performance na Feira de Ciência da escola, com música, dança e desfile de moda com materiais recicláveis –, seus desejos de criar fora das caixinhas pré-fabricadas encontravam oxigênio em casa, onde lhe era permitido construir outros mundos possíveis. Entre os móveis arrastados na sala, ele podia passar tardes a fio em apresentações para a família e para os colegas ao som de Madonna e o que mais quisesse. As escolas por onde ele passou foram, uma a uma, declinando do desafio de educar considerando a diferença e, aos catorze anos, Guilherme se mudou para Belo Horizonte.

Na capital, foi “notícia” (em uma matéria de jornal sobre pessoas que se vestiam “diferente”), integrou o Grupo Oficcina Multimédia, o Grupo Trampulim, a Meia Ponta Cia de Dança, a Cia. Suspensa, experimentou pesquisas em danças aéreas (“com corpo solto no espaço”); a lista é extensa. Por aqui, diz ter encontrado diálogo com outros pares, com quem pôde compartilhar a vontade de criar fissuras e outras possibilidades “longe do corpo higienizado e asséptico que muitas vezes a dança pressupõe, sem dicotomias certo e errado, homem e mulher, corpos atravessados, espaços lacunares, descobrir processos não lineares, permitir deslocamentos”.

Antes de conceber Trans com Ana Luisa Santos em 2011, espetáculo multidisciplinar que trabalha questões de gênero, corpo e sociedade, coordenou as pesquisas do projeto artístico El Milagro, fruto da bolsa de residência que recebeu do Centro Cultural de la Cooperación Floreal Gorini, de Buenos Aires. Foi lá que, recém-chegado em 2008, teve contato com o cabaret Noches Bizarras (“el under grotesco y politico”), ocupação artística de várias pessoas sob a coordenação de Susy Shock (atriz, cantora e escritora) e Marlene Wayar (psicóloga social, coordenadora do “Futuro Transgenerico” e diretora do primeiro periódico travesti latino-americano, “El Teje”, criado em 2007), ambas transativistas. Uma vez por mês em uma casa diferente, performances, shows de rock (com a banda Talking to Machines) e leitura de textos, tudo realizado com venda de bilheteria e de cervejas.

“Com meu portunhol selvagem, pedi para participar do grupo. Fiquei maravilhado com elas, com o trabalho, com seu discurso afiadíssimo. Entendi que não estavam falando de política, elas eram política no corpo. Comecei a me perguntar como desconstruo este meu lugar? E como coloco isso também no corpo, na estrutura e nos modos de fazer?”, lembra. Por três anos, Guilherme esteve com o grupo que, entre as várias atividades, realizou um acampamento trans por 24 horas em frente à Casa Rosada, com performances e programas de rádio. “A gente ligava o microfone e ia falando os nomes das pessoas assassinadas, gritávamos pelo direito ao nome social que, em 2012, tornou-se a Lei da Identidade Trans [!].

[!] Em maio de 2012, o Senado argentino aprovou por larga maioria (55 votos a favor e apenas uma abstenção) a lei que qualquer pessoa pode solicitar a retificação de seu sexo no registro civil, incluindo o nome de batismo e a foto de identidade, sem necessidade do aval da justiça para reconhecimento. O sistema de saúde passou, a partir da lei, a incluir operações e tratamentos para a adequação ao gênero escolhido.

Se antes de ir para terras portenhas ele já realizava pesquisas com Ana Luisa (“pedíamos carona vestidos de noiva até o Jardim Canadá, algumas vezes experimentávamos sair montados para assistir a espetáculos de teatro e shows”), ao se reencontrarem em Belo Horizonte, os dois deram início à construção de Trans. Para a apresentação no programa Observatório, em 2012, e no ano seguinte, no Verão Arte Contemporânea – VAC, trouxeram Suzy Shock. “Não queremos falar sobre minorias, é sobre todos nós. Até porque quem somos nós para representar pessoas trans? O Trans é também uma forma de fazer ou transitar por algo que não está fechado, asséptico, pronto, mas em contínua construção. Sem dicotomias e com corpos atravessados por ideias, identidades, perfis, algo que está no entre”, explica.

A Rádio Dengue – “primeiro programa de rádio pirata caseiro interativo itinerante ao vivo” –, criada em 2013 por ele, Morgana Marla e Marina Viana, ganhou vida em Belo Horizonte nos (não) moldes argentinos da rádio trans, com transmissões na rua, na internet ou em bares (como o extinto Estúdio da Carne). A proposta radiofônica se expandiu como festa, a Dengue, com sua primeira edição na Gruta, no bairro Horto, ainda naquele ano. De lá para cá, houve diferentes edições temáticas como a Noivas, em maio de 2014, com casamento coletivo performado na Rua Pitangui. Para abrigar o público em número cada vez maior – e que, muitas vezes, vai “montado” –, ela é também realizada no Matriz Casa Cultural, ao lado do Terminal JK, e já teve uma edição especial, em setembro de 2015, na abertura do Cenas Curtas, no Galpão Cine Horto, com a participação do professor e dançarino radicado em Nova York Archie Burnett. Na Dengue, Guilherme é também o mestre de cerimônias do “Duelo de Vogue”, disputa que inclui, além do voguing [!], os estilos waackingfreestylerunway [desfile] e “pombagirismo contemporâneo”. Ao apresentar os candidatos e candidatas, seu grito de “Mara o quê? Vilhosa!” ganha coro entre o público e já tem sido incorporado em léxicos do cotidiano de muita gente. Além do Duelo, há performances do Trio Lipstick, da dupla Paola Bracho e Petra Von Kant, shows de drags e discotecagens. Para muito além do crescimento do público, que tem modificado a festa a cada edição, há o desejo de estabelecer outras conexões e encontros, afirma Guilherme. Ainda em 2015, será realizada a Dengue de Rua, em parceria com Família de Rua, This is not e Teatro 171. “Temos a honra de dizer que vai ter Duelo de Vogue e Duelo de MC’s, juntos e misturados. Fazer um projeto crescer não tem nada a ver com aumento de público, e sim com aumentar discursos, ampliar pensamentos, estabelecer novas conexões e, principalmente, criar uma rede”, diz.

[!] Nas palavras de Archie Burnett, “todos esses estilos de dança vêm de uma necessidade. Normalmente é um encontro, uma reunião social que as pessoas criam. O vogue existe desde os anos 60. Ela foi inspirada na moda da Costa Leste [norte-americana] e tornou-se muito popular nos anos 1980. Começou com a combinação de três elementos: hieróglifos, que são as poses egípcias; o militar, que é o vigor; e as artes marciais, que são a energia e a força. O waacking vem da Costa Oeste e era bastante popular nos anos 1970. Sua base são os filmes antigos, do cinema mudo, as antigas estrelas de Hollywood, Greta Garbo, Marlene Dietrich e outras. Os homens eram também garbosos”, em suas poses e movimentos. Disponível aqui, o documentário Paris is Burning registra parte dessa história.

Aglutinador de ações e afetos pela cidade, antes de uma temporada de estudos na Alemanha em 2014, Guilherme reuniu amigos para formar a Banda Viada e se apresentar em sua festa de despedida. Junto com Dolly Piercing, Marcelo Veronez, Marina Arthuzzi, Marina Viana e GA Barulhista, a Banda Viada faz “plagicombinação” (termo criado pelo compositor Tom Zé), ou uma leitura das “músicas que a gente gosta e que realiza meu sonho de ter uma banda”, revela. Durante a Virada Cultural 2015, ela fez uma apresentação no Sesc Palladium, no Centro, com entrada gratuita. A alegria do público emendava com o palco, onde os multiartistas colocavam seus corpos em festa. “O Guilherme é inacreditável! O pensamento dele, a forma que ele constrói, que ele descontrói. Ele me chamou e eu obedeço!”, revela Marcelo Veronez, ator e cantor à frente do show Não sou nenhum Roberto e da série de concertos, sempre inéditos, intitulados Experimento. Sobre aquela experiência e outras mais recentes na cidade, ele afirma: “Quando esses corpos não estavam organizados, tudo bem. Mas quando essas pessoas se jogam na rua e dizem ‘eu existo sim e vou existir independentemente do que você acha de mim!’, já não é mais uma informação distante. Agora o vizinho não pode, porque meu filho pode querer também experimentar essa liberdade. É diferente de quando eu era adolescente e via isso na televisão. Cresci vendo Elke Maravilha, Madame Satã, Ney Matogrosso, Caetano, Gal pelada tocando violão em Montreux. Ali era entendido como distante, ‘ah, mas eles são artistas, artista é assim mesmo’. Agora não. Os diferentes estão todos aí na rua, querendo conviver à luz do dia, estão no busão com você. Aqueles que você chama de diferentes estão aqui e agora!”.

E eles importam.

Trecho de “Poemario Trans Pirado”, de Susy Shock

Yo, pobre mortal,
equidistante de todo,
yo, D.N.I.: 20.598.061,
yo, primer hijo de la madre que después fui,
yo, vieja alumna
de esta escuela de los suplicios.

Amazona de mi deseo.
Yo, perra en celo de mi sueño rojo.

Yo, reivindico mi derecho a ser un monstruo.
Ni varón ni mujer.
Ni XXY ni H_O.

Yo, monstruo de mi deseo,
carne de cada una de mis pinceladas,
lienzo azul de mi cuerpo,
pintora de mi andar.
No quiero más títulos que cargar.
No quiero más cargos ni casilleros a donde encajar
ni el nombre justo que me reserve ninguna ciencia.

Yo, mariposa ajena a la modernidade,
a la posmodernidad,
a la normalidade.

True trans soul rebel [!]

No dia 13 de dezembro de 2015, a estátua de Tiradentes, localizada na Avenida Afonso Pena, deve ser substituída pela de Ed Marte, reivindicam alguns belo-horizontinos. O texto que gerou o movimento pela mudança questiona: “Tiradentes, nosso símbolo de liberdade? De mãos para trás e forca pendurada no pescoço? PORRRRRRRR QUEEEEEEEEEEEEÊ? Vamos trocar essa estátua por uma do Ed Marte, porque ele merece; que se for para ser livre, que seja pelo menos de maiô e com as mãos para o alto!”.

A data pode ser completamente aleatória, e o “evento” (criado por Guilherme Morais no Facebook) apenas fictício, mas revela um pouco dos afetos que o artista de Martinho Campos, cidade de 13 mil habitantes, desperta especialmente por aqui, na capital mineira. Ed Marte já integrou a Attos Companhia Teatral e participou de vários curtas-metragens, atuou como mobilizador social e pesquisador no projeto “Favela É Isso Aí”, trabalhou em imobiliárias e em Casas de Semiliberdade para adolescentes, mas são seu estar e performar pela cidade que deixam uma marca ainda mais potente, provando que os afetos e as experiências podem ser plurais, e os corpos transitórios e livres.

Na convocatória para ir de branco para a Praça da Estação, que se desdobraria, mais tarde, na Praia da Estação, Ed estava presente. E também pela Rua Aarão Reis, com um acordeon e vestido de noiva, na performance CASA CORPO, a convite da Ocupação Afazeres Queers; ou de maiô na porta da 31ª Bienal de São Paulo, junto a cadeiras de praia e baldinhos d’água numa ação realizada à época da crise hídrica naquele Estado; no rolezinho com churrasco no Parque Municipal; na fonte da Praça da Savassi com outros banhistas. Como performer, artista plástico e ativista, Ed Marte descarta a atuação em galerias; diz querer a rua, “onde as pessoas podem ser parte das ações”. Nesse(s) encontro(s), vira e mexe uma criança pergunta: ‘você é homem ou mulher?’.

Ed Marte parece mesmo não temer esse lugar-outro, não hegemônico, não higienizado. Cotidianamente, nos lembra que é possível pensar formas de resistência que vão além das leis, formas essas que podem oferecer diferentes modos de vida. Ressalta que é preciso “levar a vida com leveza”, enquanto ajeita os anéis e pulseiras durante a entrevista, que é a todo instante “interrompida” por pessoas que passam pelos jardins do Palácio das Artes e, com um largo sorriso no rosto, dizem: “bom dia, Ed!”.

[!] Canção da banda norte-americana “Against Me!”, liderada por Laura Jane Grace, vocalista trans.

Carol Macedo integrou o grupo de estudos da Ocupação Afazeres Queers, a performance Kombi Queen Queer e foi uma das residentes da TransResidência Experimento Queer.