Revista Marimbondo

“Domingo eu vou ao Mineirão”

ENTREVISTA | Marcelino Rodrigues

Marimbondo: Os times de futebol têm em comum o grito de suas torcidas, que cantam músicas seja para combater o adversário, seja para apoiar o time. Por que você acha que essa maneira de torcer se tornou a predominante no mundo? Poderíamos dizer, segundo a lógica de Nelson Rodrigues, que o futebol é uma tragédia e que a torcida faria, então, o “papel de coro”?

Marcelino Rodrigues: Acho que um dos motivos pelos quais as torcidas cantam nos estádios é o fato de que o futebol é um esporte popular. Os cantos das torcidas, com seus desafios, gozações e xingamentos aos adversários, são uma forma de manifestação mais livre do público, sem os constrangimentos que regulam o comportamento de grupos mais elitizados. Na história do futebol no Brasil isso é muito claro: na década de 1910, que eu estudei um pouco, nós vemos claramente as críticas severas dos cronistas à falta de fair play, ao comportamento turbulento e mal educado dos torcedores mais pobres, que já começavam a invadir os estádios.

O curioso é que muitas vezes os protagonistas dos chamados “sururus” eram justamente os torcedores e jogadores das elites, metidos a refinados e civilizados, embora as críticas quase sempre fossem endereçadas aos mais pobres.

Na comparação do futebol com o teatro, que o Nelson Rodrigues tanto gostava de fazer, o torcedor faz, sim, o papel do coro, desse personagem coletivo que representa a visão do público em relação ao que se passa na cena. Mas, num ponto importante, o futebol é bem diferente das tragédias clássicas, em que o destino se impunha e o final das histórias, que vinham dos ciclos míticos, era conhecido previamente pelo público. O futebol é um jogo, ele não tem um final preestabelecido, o destino está permanentemente em jogo sem que se saiba de antemão quem serão os vencedores e os perdedores. Por isso, o comportamento da torcida é de combate, a torcida é a camisa 12, pode e quer influenciar o resultado. Os cantos dos torcedores, então, são uma arma no combate simbólico que acontece no estádio. Uma arma que, inclusive, pode se voltar contra o próprio time.

M: É certo também que, ao menos no Brasil, as músicas em um estádio de futebol apresentam uma variedade enorme de possibilidades: músicas ofensivas (“[…]cruzeirense [ou atleticano] chora, pega sua bandeira enfia no cu e vai embora”), músicas bonitas que exaltam a paixão (“Hoje larguei tudo pra te ver, faço isso por amor, dou a vida por você!”), músicas motivacionais (“Vamos, vamos cruzeiro, vamos, vamos a ganhar”), paródias dos cantos das torcidas adversárias (“Vamos, vamos, cruzeiro, bicharada a cantar”), músicas que individualizam a grandeza de certos jogadores (“puta que pariu, é o melhor goleiro do Brasil”), etc. Inclusive, em alguns desses cantos, percebemos um sem números de termos homofóbicos, racistas, classistas, como é evidente nas músicas que ficaram imortalizadas desde a Copa de 2014 com a torcida da Argentina e que foram recriadas tanto pela torcida do Atlético quanto pela do Cruzeiro (ver letras abaixo). Nesse sentido, em que medida as músicas da torcida de futebol, especialmente no Brasil, ajudam a simbolizar e a significar um jogo em particular e o futebol como um todo?

MR: O Carlos Drummond de Andrade tem um poema muito legal (“Solução”, está no livro Quando é dia de futebol), que diz que o futebol é um “esporte verboso”, ou seja, um esporte que não acontece só no campo, mas que é também uma batalha verbal entre os torcedores. Daí o sucesso dos cronistas, narradores e comentaristas que claramente assumem uma posição e se entregam sem disfarces à polêmica e à parcialidade, como era o caso do Nelson Rodrigues. Como torcedores, eles também jogam o jogo, por isso parecem mais confiáveis aos que compartilham com eles a mesma paixão clubística.

Como espetáculo, o futebol é o ponto de partida de uma incrível teia de discursos que interpretam constantemente o jogo e atribuem sentidos locais e contextualizados aos acontecimentos, personagens e instituições do mundo esportivo. Os cantos das torcidas nos estádios, naturalmente, são uma parte importante dessa teia de discursos, pois articulam e canalizam, de uma maneira direta, os sentimentos de uma parte fundamental do espetáculo, que é o público. Isso tudo em tempo real e diante dos olhos e ouvidos atentos da mídia e daquela outra parte do público que acompanha o espetáculo pelo rádio ou pela TV. Novamente, a comparação com o teatro é sugestiva, pois a torcida acaba fazendo parte do espetáculo, como o coro, e seus cantos viram assunto dos comentaristas e dos outros torcedores.

Uma coisa interessante, nesse sentido, é que os cantos das torcidas são atravessados por uma infinidade de informações culturais diferentes que conectam os torcedores e ajudam a construir o sentimento de coesão entre eles. Mas, ao mesmo tempo, criam linhas de fuga que amplificam os sentidos dos signos esportivos. Penso, por exemplo, no “aqui tem um bando de loucos”, da torcida do Corinthians, no “levantou poeira”, que várias torcidas cantaram, algum tempo atrás, e no samba “Vou festejar”, da Beth Carvalho, que durante muito tempo embalou a torcida do Atlético. O sentido, nesses cantos, não é uma coisa fácil de pegar e definir com clareza, não é simplesmente uma afirmação tribal da unidade do grupo, mas sinaliza para algo que escapa a uma visão tão simplista. Como multidão, a torcida é sempre marcada pela heterogeneidade, pela multiplicidade, pela apropriação plural e instável dos signos esportivos.

 

Canto da torcida cruzeirense

Frangas, me diz como se sente.
Em ser segundo nas Gerais.
Mesmo que se passem os anos.
Não vou me esquecer jamais!

Você jogou a série B
De 6×1 te vi perder
Camisa rosa nunca vai sair d’ocê!

O Cruzeirão você vai ver.
O Tetra vamos vencer.
De Marrocos ainda deve a CVC!

 

Canto da torcida atleticana

Maria, eu sei que você treme
Sempre que o Galo vai jogar
Eu vi Riascos ir pra bola
E o Victor de bico isolar

9 x 2 eu já ganhei,
Vi o gol do Vanderlei
E o Fábio lá de costas a chorar

Do Veron eu vou lembrar,
o Mineirão se fez calar
E o Galo para sempre eu vou amar.

M: Que possível semelhança existe entre essa constituição/construção de identidade da torcida, por meio do hino do clube e de suas músicas, com a constituição/construção de identidade de um país ou estado-nação?

MR: Toda a construção discursiva em torno das tradições e das identidades clubísticas é mesmo muito semelhante ao que acontece com as nações. Num primeiro plano, a gente pode falar dos símbolos dos clubes e das nações; não só os hinos, mas as bandeiras, os brasões e escudos, as cores… E, por trás disso, a mitificação do passado, a criação de uma continuidade no tempo e de uma solidariedade horizontal entre os membros de uma nação ou de uma torcida, a linguagem metafórica que transforma muitos em um. O canto do hino em uníssono pela torcida e os abraços fraternos entre estranhos na hora do gol materializam de maneira exemplar esse caráter de “comunidade imaginada” (expressão usada pelos teóricos para se referir à ideia da nação como uma construção cultural) das torcidas de futebol.

Mas, novamente aí, é necessário enxergar as diferenças. A nação surge como uma forma de dar legitimidade ao estado, pois é do povo que, na ideologia republicana, emana o poder dos governantes. No mundo do futebol, especialmente no Brasil, no entanto, as coisas não funcionam bem assim. Os clubes são governados por verdadeiras oligarquias, que se perpetuam no poder sem nenhum mecanismo de legitimação desse poder como uma representação da vontade dos torcedores. Nesse sentido, o simbolismo do futebol acaba pondo às claras uma característica atávica da sociedade brasileira, a despeito da fachada de estado democrático de direito que existe hoje.

De qualquer modo, a existência dessas pequenas nações, que são os clubes de futebol, é uma evidência das fronteiras internas, das diferenças e dos conflitos que atravessam a comunidade nacional. E também dessa necessidade que os seres humanos têm de se unir e se dividir, de construir identidades e jogar com alteridades; necessidade que estrutura a vida cultural como um todo. O outro que mais me interpela e me desafia é, muitas vezes, aquele que está mais próximo, como se vê na rivalidade com os argentinos, que viram piada em comerciais de TV, e nas várias rivalidades locais que dividem as grandes metrópoles brasileiras e se atualizam em acirrados duelos verbais nos estádios e fora deles.

M: Em um clássico de futebol – um dos pontos altos dos campeonatos –, a disputa se dá no campo e nas arquibancadas, onde há também uma “guerra” verbal conduzida pelas torcidas adversárias. Aliás, o próprio termo “guerra” é usado por elas (“time de guerreiros”, “agora é guerra!”, etc.). Há ali – como entre exércitos – também uma disputa por territórios? Que territórios se almejam conquistar por meios dessas músicas de futebol?

MR: A ligação do futebol com a guerra realmente existe e não é apenas metafórica. O futebol moderno surgiu como sublimação da guerra. Isso fica muito claro nos jogos-rituais que antecederam o futebol moderno, como o harpastum, o soule e o calcio. Os jogos eram grandes batalhas campais entre os habitantes de diferentes aldeias, disputadas com “bolas” feitas de vísceras animais, que serviam para descarregar as energias e os conflitos latentes entre essas comunidades, evitando assim o confronto direto e mais destrutivo. Depois as disputas foram reduzidas a um grupo menor de jogadores, com as outras pessoas passando para o papel de torcedores. Por isso, acho que uma dose de violência é inerente ao futebol e não pode ser tirada dele. Discordo daqueles que dizem que a violência do futebol não vem dele, mas das condições sociais do público, etc. Sem um pouco dessa violência, que é constitutiva das relações sociais, o jogo não funciona. Mas é claro que estou falando da violência simbólica, pois o sentido do jogo é justamente a passagem do conflito para o campo simbólico.

Consequentemente, o canto da torcida é, sim, um canto territorial. Cantar mais alto e com mais emoção e energia que a torcida adversária, parodiar a música do rival, jactar-se das próprias qualidades e conquistas, humilhar e ofender o oponente… São armas do torcedor na disputa pelo território. Pra pensar nessa questão, é bem interessante a ideia do ritornelo, explorada por Deleuze e Guattari em Mil platôs [livro escrito pelos dois filósofos franceses]. O canto territorial dos pássaros, uma criança que canta no escuro e alguém que canta enquanto arruma a casa buscam criar um eixo e demarcar um território (até onde a voz alcança). Mas quem está dentro pode ir pra fora, e o fora, o outro, em algum momento, pode estar dentro, violando as fronteiras do território e traçando linhas de fuga. Nas rivalidades locais, que opõem torcedores que moram lado a lado, na mesma cidade, na mesma rua ou na mesma casa, algumas dessas linhas de fuga talvez possam ser encontradas na relação, sempre denegada, de dependência entre os rivais. Uma relação que tende a ser especular, em que um lado sente inveja e ciúmes do outro, a quem é sempre necessário negar e afirmar ao mesmo tempo.

M: Quase todos os times do país cantam, com suas variações, “Domingo, eu vou no Mineirão, vou torcer pro time que sou fã”. Qual é a relação entre a música popular e as cantadas pelas torcidas? Há diferenças substanciais entre a apropriação que torcidas de um futebol mais antigo faziam e a que é feita hoje?

MR: Como uma criação espontânea dos torcedores, gerada em momentos de euforia coletiva, os cantos da torcida são muito permeáveis às informações que vêm da cultura no seu entorno. Além disso, eles são efêmeros, eles mudam o tempo todo, novos cantos são criados e outros caem no esquecimento. A canção popular é com certeza uma das fontes que alimentam permanentemente a imaginação musical dos torcedores: o samba, o funk, o axé. Por isso, os cantos das torcidas são atravessados por traços e valores daquele período, mais ou menos fugaz, em que eles existem. Para o público de hoje, os cantos mais antigos talvez soem meio ingênuos, muito contidos moralmente ou mesmo sem sentido. Mas acho que o palavrão, o xingamento e a gozação sempre estiveram presentes, pelo menos desde o momento em que o futebol se popularizou.

Com a elitização dos estádios, que vem acompanhando o processo mais recente de apropriação do futebol pelos interesses do capitalismo global, e que se acentuou no Brasil com a Copa do Mundo, fica a dúvida se continuará sendo assim. Durante a Copa, a Fifa tentou impor aos torcedores uma série de regras de comportamento que acabaram sendo mais ou menos dribladas, mesmo com o público mais rico, que conseguiu comprar e pagar os difíceis ingressos para os jogos. Nas manifestações de junho de 2013, muita gente identificou um comportamento lúdico e festivo, parecido com o dos torcedores nos estádios. Por outro lado, acho difícil imaginar que o futebol brasileiro possa sustentar por muito tempo um padrão muito alto de preços de ingressos e presença nos estádios. De alguma forma, o futuro dos cantos dos torcedores está ligado a esse processo mais amplo, a essa encruzilhada vivida hoje pelo futebol, entre seu passado popular e sua assimilação por uma lógica de funcionamento determinada pelo marketing esportivo.