Na linha 30, sigo do Barreiro rumo ao centro
de Beagá por uma Teresa Cristina desértica.
Quem andaria por uma avenida sem sombras
numa tarde árida dessa? Sem clima para um
livro, me pego a olhar as pixações. E não é
que elas também me olham? Encarada pelas
órbitas brisadas dum A, esfrego meus próprios
olhos, desperto da letargia e prego na janela do
ônibus, ao encontro de outras pixações para me
fazer companhia. Cruzo com um cenho fechado
aqui, um sorriso maroto ali. Trombo com um
outro A, segurando um rolinho de tinta. Esbarro
num O, um cigarro enrolado entre os lábios.
E por aí vamos nós…
Letras com olhos, bocas e nariz costumam
ser chamadas de caricaturas, me contou
um pixador que se dizia o pioneiro nesses
desenhos aqui em Beagá. Isso nos primórdios
da pixação, nos anos 1980, muito antes de,
nas conversas pela internet, exprimirmos
emoções com montagens de caracteres
tipográficos, os emoticons, ou mesmo com
pictogramas, os emojis.
Entre tantas caricaturas, avisto tipos
conhecidos: é o X e o R (ou o E ou o L – não
sei distinguir, e tudo bem, isso não é exame de
vista nem prova de português). O R (ou E ou L)
se contorce, lançando ao chão um jato de tinta/
saliva. Seus olhos espremidos em asteriscos
não me enganam, esse alfabeto me lembra
alguém. De longe, mando um alô:
caco de vi
muro de chapi
pisco
cuspo
no p-
asseio ( ! )
Conversas como essa, entre um grapixo
e um poema, são recorrentes nos meus rolês
pela cidade. Para além do jogo de decifrar
alfabetos desconhecidos ou das análises
sociopolíticas, a leitura de pixações também
se faz criação poética.
Os versos citados ao longo
do texto compõem o poema
“O belisco”, inédito.
Sem zanga
Desaguo no tráfego caudaloso de uma
Amazonas sobrevoada por um enxame de
zangões. A abelha dentuça é uma espécie
endêmica de Beagá, marca daquele que é
considerado um dos pixadores de mais ibope
da história da cidade, por ter conseguido pixar
locais de acesso difícil e de grande visibilidade.
Ao passar pela personagem, escancaro meus
dentões num sorriso, cumprimentando minhas
xarás: Débora, em hebraico, significa abelha.
A fauna da pixação é diversa: urubus, ratos
e aranhas também aparecem em desenhos,
palavras ou incorporados pelos pixadores.
Sua habilidade de escalar paredes,
por exemplo, é comparada à de um inofensivo,
porém esperto réptil, na letra do funk “BN
do Boldin”, de MC Gago:
“Nós não precisa de escada
Nós sobe igual lagartixa
Nós desce de corda de um prédio pra outro
Igualzinho cena de filme”
De saída do cinema, numa noite vazia de
semana, me vejo apanhada numa teia que
descia, letra abaixo de letra, a fachada de
um edifício na esquina da Rio de Janeiro
com a Augusto de Lima. No alto, o desenho
de um semicírculo, sobreposto por uma forma
parecida com a letra M e outra próxima a um
acento circunflexo, formando um losango ao
centro, me lembra um aracnídeo. Coloco os
óculos para tentar enxergar as letras menores
abaixo da sequência de outras 10, grandes
e estilizadas. Em alfabeto convencional,
está escrito:
“OS
MENINOS
ARANHA”
Picada pelo artrópode, minha escrita
metamorfoseia-se: em caligrafia escolar, passo
a escrever na vertical, pauta abaixo, naquela
última página do caderno, entre rabiscos,
endereços, contas:
a
r
a
n
h
i
n
h
*
Bouleverser
Dobrando a esquina, me deparo com a fachada
brilhosa de verniz antipichação da Imprensa
Oficial, antes uma das principais agendas de
Beagá. Agenda é um ponto na cidade que reúne,
ao longo de muitos anos, uma grande quantidade
e diversidade de pixações, incluindo assinaturas
de pixadores fora de atividade, até mesmo os já
falecidos, tendo por isso valor histórico e afetivo.
Algumas agendas que marcaram as primeiras
três décadas da pixação beagaense, no período
entre 1980 e 2010, foram o estádio Governador
Magalhães Pinto, vulgo Mineirão, o inacabado
hotel Beira Rio e a mencionada sede da Imprensa
Oficial de Minas Gerais.
Essas três agendas foram apagadas em reformas
na década de 2010, num processo
de gentrificação, isto é, reconstrução da cidade
com o objetivo de “enobrecer” áreas urbanas
consideradas “decadentes”, no jargão do
mercado imobiliário. É o caso do chamado Baixo
Centro de Beagá, onde ficava o hotel Beira Rio,
uma cova aberta no skyline beagaense.
A agenda do Beira Rio, como explicita o nome
do que seria um hotel, ficava às margens de um
dos principais cursos d’água que banha Beagá, o
Arrudas. Já bastante poluído e correndo em um
leito de concreto, o rio foi totalmente canalizado
naquele trecho, e seu leito incorporado à
ampliação das avenidas do Contorno e dos
Andradas em uma operação urbana chamada
Boulevard Arrudas.
Nesse bulevar, que de arborizado não tem nada,
agora brota uma tulipa dourada, tradução do
nome, em inglês, do hotel “de luxo” que seria
erguido sobre a carcaça do Beira Rio. A fachada
espelhada incorpora a paisagem celeste, como
numa tentativa de apagar os efeitos colaterais
do progresso enterrados sob os pés dessa
suntuosa estela funerária. Mas ainda que o
esqueleto do Beira Rio tenha sido revestido
de espelhos, a memória da agenda continua
refletida ali. Do Viaduto Leste do Complexo da
Lagoinha, quase 10 anos depois, leio, no topo
do prédio, tal qual a inscrição numa lápide:
“PAVOR”
Apagadas, as pixações revelam-se um fantasma
a assombrar a Cidade Jardim, com seus
consecutivos processos de modernização, que,
muitas vezes, não passam de fachada.
Seguindo pela Andradas, me pego arquitetando
outras cidades, numa linguagem fragmentada
como os cacos de sílabas e letras de pixações,
pichações, letreiros, lambes que leio, em
movimento, da janela/tela do busão:
imaginá-
rio Arrudas
ex-
corre-
dor de trânsito
bouleverser le boulevard
Exu
exu-
mar Arrudas
Descontorno
No Move, a caminho do trabalho, me lembro
de uma Antônio Carlos em obras de duplicação
e dos viadutos que passavam a se multiplicar
ainda mais dentro do perímetro urbano, com
a ampliação também de outras avenidas.
Como me sinto impotente ao me imaginar
atravessando a pé uma dessas estruturas
viárias, construídas para priorizar a circulação
de veículos, principalmente carros, e não o
transporte coletivo. Enquanto espero outro
ônibus, picho ( ! ) na terra do canteiro central da
avenida, com uma esferográfica sem tinta:
em solo aarado
a colher
asfalto
sola no horizonte
)descon-
tornado t-(
arde
Na Antônio Carlos, quatro viadutos receberam
nomes de países de África – Senegal, Angola,
República do Congo e Moçambique –, por
determinação da lei nº 10.137, sancionada em
comemoração ao Dia Mundial de Luta Contra
a Discriminação Racial, de 21 de março de 2011.
Em placas embaixo deles leem-se versos de
“A canção do africano”, do poeta baiano Castro
Alves (1847-1871). Na Linha Verde da Cristiano
Machado, foram batizados com nomes de
11 escritores e de uma escritora mineiros:
Fernando Sabino, Roberto Drummond, Carlos
Drummond de Andrade, Murilo Rubião, Pedro
Nava, Abgar Renault, Paulo Mendes Campos,
Oswaldo França Júnior, Aníbal Machado, Otto
Lara Resende, Hélio Pellegrino e Henriqueta
Lisboa. Mas, via de regra, as placas dessas
estruturas ostentam nomes de figurões
políticos ou militares.
Em 2012, o elevado que liga a Pedro II à
Olegário Maciel ficou sem nome. Havia sido
revogado o decreto municipal de 1971 que o
batizara Castelo Branco (general que assumiu
a presidência do Brasil com o golpe militar
que instaurou a ditadura, em 1964). Um novo
decreto, que aprovaria a mudança para Dona
Helena Greco (ativista política e primeira
mulher eleita vereadora em Beagá, em 1982,
quando o país caminhava para a abertura),
só seria baixado mais de um ano depois.
Naquele ínterim, para mim, o elevado passou
a se chamar, como lido em uma assinatura
pixada em sua mureta:
“GOMA”
Considero que pixar/pixação
é uma escrita singular, que
envolve criação de alfabetos,
gregarismo e todo um ethos
que não vivencio, por isso,
quando escrevo na cidade,
picho, com ch.
Opacidade
A cidade das fachadas espelhadas e dos viadutos
é a mesma dos arranha-céus, que substituem
imóveis térreos e edifícios baixos. Nesse cenário,
as pixações agigantam-se também. Descendo a
Nossa Senhora do Carmo, avisto de longe letras
que tomam toda a altura das fachadas de um
predinho de três andares. De perto, percebo seu
contraste com a estatura de um carteiro, que
anda no passeio ao lado – para meu espanto –,
com o meu próprio um metro e setenta.
Como a personagem Alice, dos livros de Lewis
Carroll, estranho meu tamanho. Dentro do
ônibus, os joelhos encolhidos contra o encosto
do assento à frente, me sinto agigantada. Ao
saltar, perdida no vertiginoso paliteiro em que
transformaram o tabuleiro de xadrez limitado
pela Contorno e suas adjacências, me sinto
diminuta. Como num balão que exprime
pensamento numa história em quadrinhos,
picho com o dedo o vidro empoeirado de um
carro estacionado na rua:
horizonte sus-
penso em pó:
opa, cidade
Na pixação, uma sobrevivência da escrita à
mão numa era em que digitamos, a arte
caligráfica mantém-se viva de modo singular.
Letras do tamanho de edifícios são escritas
graças ao uso de gambiarras – entendidas aqui
no sentido afirmativo, produtivo e criativo de
uma tecnologia que consiste em invenções com
materiais desviados de sua utilidade dominante.
Na pixação, por exemplo, costuma-se acoplar
um rolo de pintura à ponta de um cabo
qualquer, o chamado extensor, para ampliar
o alcance dos braços.
Pixações não tão grandes podem ser feitas sem
esse recurso. Presa num carro parado no sinal
da Afonso Pena com Guajajaras, presenciei um
pixador em ação: agachou-se para começar o
desenho da letra no nível mais baixo, depois se
ergueu nas pontas dos pés e esticou os braços
o mais alto que conseguiu alcançar. Nesses
movimentos de “grafitness” – como diz um
grafiteiro –, um pixador amplia e expande os
gestos da escrita em comparação àquela feita
nas pontas dos dedos numa página de papel, em
teclas de um computador ou numa tela
de celular.
Essas gestualidades me remetem ao que
chamo de escrituras antropométricas, comuns,
sobretudo, em práticas da infância, como os
desenhos do contorno do próprio corpo, inteiro
ou de partes dele, geralmente das mãos e dos
pés. Ou, ainda, como aquelas marcações, em
uma parede, da variação da estatura de uma
criança à medida do seu crescimento.
Tendo observado que o tamanho das pixações
agigantou-se em um período de intensificação
da verticalização urbana e de alargamentos e
ampliações de vias, passei, então, a ler essas
assinaturas enormes também como marcações
de altura e contornos de corpos humanos no
exterior dessas arquiteturas escalafobéticas.
Deseretizar
Voltando da redação do jornal onde trabalhava
como repórter e passava boa parte do
expediente grudada em um computador, me
peguei mexendo minha cabeça, meus ombros,
meu tronco. Percebi que meus movimentos eram
conduzidos pelas linhas das pixações que lia.
Contornava suas letras, mas não com um lápis
em um papel, como em um dos exercícios de
alfabetização que esculpiu os primeiros calos
em meus dedos de menina. Contornava-as com
todo o meu corpo, no assento do ônibus onde
me encontrava.
Em outra ocasião, fazendo minha caminhada
rotineira no Parque JK, uma pixação que
se repetia ao redor do circuito me chamou
a atenção. Mais uma vez percebi que lia as
assinaturas com meu corpo inteiro. Fazia gestos
e movimentos enquanto andava: flexionava
meus joelhos e o tronco, erguia os braços em
círculo no alto da cabeça, abaixava-os, levantava
os ombros, ondulava o braço esquerdo e em
seguida o direito, que se inclinava acima
da minha cabeça.
– A pixação me tirou pra dançar!
Essa dança criada ao ler pixações se faz na
fronteira com a escrita, livre de automatismos
e de uma ideia, seja de dançar, seja de escrever,
realizada em locais, tempos e situações não
designados socialmente para essas artes.
Posso dizer que a pixação mexe com minha
corpa, tanto fisicamente quanto na ideia
dominante de um corpo. Só de olhar uma
pixação, minha corpa muda, torna-se outra.
Estranha os ideais de conforto, segurança,
civilidade, estranha a si mesma. Não se
reconhece, não se sabe e picha esse não saber,
a giz escolar, no passeio de um dos quarteirões
da Praça Sete:
re-
quebrar
a cadeira
a coluna
o o-
belisco
deseretizar
Para minha corpa, essas experiências entre
a leitura, a escrita e a dança não são estéticas,
mas estésicas. Adoto esta palavra buscando
me afastar da ideia de um belo transcendente
que aquela outra assume para o bom senso
e o senso comum, e tentando me aproximar
do antônimo de anestesia, que seria a privação
dos sentidos.
Em termos de estesia e de anestesia, minha
corpa se repensa com relação ao sentido do
movimento. Na vida urbana metropolitana e
na vida digital, a tendência que parece se impor
é a do gesto automático e da imobilidade,
alienando a corpa de suas potências de mexer
e, consequentemente, de pensamentos que
podem se fazer em ação.
A pixação é uma expressão viva da linguagem
da escrita à mão, reinventada na criação de
seus próprios alfabetos, pixados em suportes
inusitados, em escalas gigantes, desafiando
a arquitetura, a sinalização e as proibições
implícitas, como a de não tocar uma parede
suja. Considerando-se que o paradigma atual
da escrita é a digitação, isto é, a escrita com
as pontas dos dedos, às vezes de um dedo
apenas, o indicador ou o polegar, me pergunto:
não seria a pixação o ossǝʌɐ ɐp ɐʇıɹɔsǝ?