Revista Marimbondo

LECA

Enquanto Aía ainda reinava absoluta, o vizinho Israel Rodrigues Campos integrou-se aos Carolinos como presidente e, sobretudo após o afastamento e a morte da Rainha Conga, teve papel de destaque no gerenciamento dos assuntos administrativos e políticos da guarda. Tomou decisões polêmicas, como a transferência da sede para o bairro Rio Branco, em Venda Nova, o que levou o capitão-mestre Nelson a ficar afastado por quase uma década, ainda que, três anos depois, a ideia de levar a santa e o festejo para longe da pedra fundadora de Luiz Carolino tenha se mostrado agourada, fazendo com que os elementos sagrados retornassem ao Aparecida. “Muita gente acha que congado é só botar uma farda bonita, sair e tocar, mas não é isso não, congado tem mandamento, congado tem mandamento, congado tem mistério, e o mandamento e o mistério dessa guarda estava no Aparecida, abandonado, quando eles foram pra lá, abandonado ali. Aí a festa lá começou a cair, foi caindo, caindo, caindo”, conta ele. De acordo com a pesquisadora em Antropologia, Junia Torres: “A territorialidade é fundamental. São erguidos mastros sobre fundamentos sagrados que marcam nesse local específico a existência dos Reinos, das sedes dos congados, elementos não facilmente transferíveis e que não devem jamais ser abandonados. A comunidade estabelece uma relação de fundação com esse território, com as energias, forças, elementos e pessoas que o circundam”.

Foi pelas mãos e relações de Israel que a santa mencionada, uma grande imagem de Nossa Senhora do Rosário que fica no centro do altar, foi doada aos Carolinos pelo então prefeito Sérgio Ferrara, em cerimônia na Praça da Liberdade, em 1987. O presidente também teve papel importante na criação da guarda de congo, o que levou Os Carolinos a ampliarem o nome para Guarda de Moçambique de Nossa Senhora do Rosário e Congo Sagrado Coração de Jesus. Com o fim do congo, a palavra foi suprimida, mas a homenagem ao Sagrado Coração de Jesus permanece. A morte e o afastamento de importantes integrantes e, principalmente, o vácuo de liderança deixado pela ausência das herdeiras e herdeiros diretos do Moçambique, as filhas e filhos de Luiz Carolino, levou a guarda para bem próximo do fim. O capitão-mor Nilson, o capitão-regente Wilson Moreira Soares e Neusa de Assis Moreira Silva, também neta de Luiz, e hoje quem zela pela sede, foram os responsáveis pela continuidade da guarda, que chegou a sair com cinco integrantes fardados enchendo uma kombi. “Não chegou a parar, não, mesmo nós nesse sufoco todo. Não tem jeito, é do sangue mesmo, é igual time do Galo, se não tiver sacrifício, não tem jeito, não”, diz Capitão Nilson.

Foi também nessa época que a suposta doação da Capela no Retiro para a Arquidiocese de Belo Horizonte configurou-se como um duro golpe para Os Carolinos. Dizem que a filha de Antenor Carolino assinou um papel sem saber o que diziam as letras miúdas, e a igreja mudou de dono. Para descrever a capela perdida, Wilson usa a palavra senzala, dando a ela o sentido de abrigo e fundando a tradição que perpetua no tempo, na história e no grupo social ao qual pertence. “A gente acabava de levantar bandeira, a gente dormia ali no chão mesmo ou a gente ia pra casa do Tenor dormir debaixo do pé de manga. Hoje, o que a gente tiver que fazer lá, se o padre autorizar, bem, se não autorizar… Nós perdemos o direito da nossa senzala, onde nós saía daqui pra louvar Nossa Senhora do Rosário”, diz ele com um nó na garganta de  vontade de chorar.

A superação do período de perdas chegou para Os Carolinos com o retorno de Leca, filho de Luiz Carolino, após mais de uma década de afastamento. Um líder carismático, respeitado, conciliador, firme, marrento e moleque são alguns dos adjetivos usados para reverenciá-lo. Antes de sua morte, que se deu em 2013, ergueu com as próprias mãos um sonhado refeitório no terreiro d’Os Carolinos.

A volta do herdeiro de direito do moçambique de Luiz também foi conflituosa, e ele respondia com raiva às modificações que os sobrinhos implementaram ao longo dos anos. “Tinha coisa que ele falava que a gente não aceitava, que ele aprendeu lá, né? Aprendeu no fundamento, e a gente aprendeu na força, então a gente batia muito de frente”, conta Capitão Wilson. O retorno, no entanto, trouxe de volta Carolinos  afastados, e a influência de Leca, sobretudo entre os mais jovens, os consolidou como uma guarda renovada em suas esperanças de uma vida longa.

De volta aos Carolinos, Leca já não mais fardava, mas abriu exceção na festa de São Benedito, em Aparecida do Norte, em 2012. A guarda estava sendo acompanhada por uma equipe de filmagem para a produção do vídeo Os Carolinos e, no último dia de gravação, ele desejou que sua imagem no meio da guarda em formação, tocando caixa como não fazia há anos, fosse a que ficasse registrada, momento que causou grande comoção entre todos os presentes.

Pouco antes de morrer, Leca fez um pedido que ecoou as palavras ditas no momento da partida por tantos outros congadeiros que estão à frente de suas irmandades: “falem para os meninos continuarem. Não deixem o moçambique do meu pai morrer”. Os meninos e meninas que continuaram carregam, ainda não ressignificada pelo tempo, a dor de sua ausência. O canto que colocamos na página 67 é entoado por sua sobrinha, Capitã Neide — eleita presidenta com a difícil missão de substituí-lo — para invocá-lo durante os ritos. E é com Leca que, diariamente, ela ainda conversa pela janela do quarto.