“Na sede da Galoucura [!], ali na Pedro II com o elevado [Helena Greco], teve muito baile funk. Iam galeras de vários bairros, até quem era cruzeirense aparecia lá”, conta Marcio Murari, que entre 1994 e 1997 foi Relações Públicas da entidade. A existência de “galeras” era bastante comum na época, muitas vezes costuradas em laços criados entre pessoas do mesmo bairro ou que compartilham a paixão por um mesmo time de futebol. “Ao menos para gente que era do subúrbio”, ressalta Murari, que é também DJ e hoje estuda Teatro na UFMG.
[!] Criada em 1984 por torcedores do Clube Atlético Mineiro, ela existe até hoje e é dividida por regiões da cidade: Galoucura Barreiro, Noroeste, Nordeste, Zona Sul, Zona Leste, Zona Oeste e Zona Norte. Em 2008, tornou-se também uma Escola de Samba.
Quando os encontros eram para ouvir música, o som não era apenas o funk — geralmente o carioca —, mas estilos tão diversos quanto pagode, rap ou rock. “Essa coisa de convivência separadinha, de fulano é do funk, ciclano do rap, é mais classe média. A gente era tudo embolado. Tipo, não sei quem do Cabana disse para gente ir em tal lugar; só depois de velho fui saber que era o Marrakech [!]. Você ia para encontrar com a galera, e ia de bando, aquele monte de gente no ônibus ou às vezes à pé mesmo”, lembra.
[!] Marrakech (Prado) foi uma danceteria onde o flash house era bastante popular, assim como Arena (Contagem), Space (Savassi), Phoenix (Padre Eustáquio), Olympia (Centro-Lourdes, embaixo do edifício JK), Hipodromo (Santa Efigênia), Chamonix (Santo Antônio), e tantas outras.
Em tempos pré-internet, as imagens e os sons eram acessados das formas mais difusas, em diferentes suportes e momentos. Assim como as motivações para se reunir. “Pra gente era uma grande influência os filmes de rua, como Warriors, os clipes do Michael Jackson, com as gangues e as danças com os primeiros b-boys de Nova York. Tinha também muito baile no Vilarinho, baile de brown no Alto Vera Cruz, as barraquinhas de cada bairro, sempre com DJs locais. Já chegavam as fitas cassete da Furacão 2000 que traziam um funk mais gringo, Miami Bass. A gente também se emprestava os VHS com os clipes de skate e eles sempre vinham com uma trilha de punk, hardcore, rap. Tinha a pixação, que você saía em bando e já reconhecia todo mundo; aquele ali é o João do Bom Jesus, a Maria do Concórdia, fulano da DPC [Demônios Pichadores da Cachoeirinha], ciclano da DP [Demônios do Planalto]. E, claro, tinham as torcidas organizadas, com um número enorme de pessoas. Não tem como olhar para esse fenômeno de baile funk aqui e não falar das galeras de torcida e pixação”, afirma Murari.
“EU PIXAVA SIM, E CURTIA MUITO”
Ainda que a repressão à pixação tenha ganhado, mais recentemente, contornos draconianos — muitas vezes arbitrários, com pixadores sendo presos preventivamente [!] com mandados de busca e apreensão domiciliar, acusados de “formação de quadrilha” —, historicamente ela quase nunca é reconhecida por aqui, seja pelo poder público ou sociedade civil, como algo que constrói redes e sentidos, que atua politicamente na cidade e inscreve uma história. Naquela época não era diferente. “Você pode fazer uma leitura, como um arquivo mesmo, a partir dos muros de BH, porque eles te contam uma história. A Guaicurus era uma que tinha essas primeiras inscrições todas, mas é impressionante, tentam sempre passar por cima com tinta”, diz.
[!] Em 2010, pixadores bastante atuantes na cidade (“Piores de Belô”) foram presos preventivamente, em suas residências, ficando encarcerados 117 dias. As “provas” para acusação de formação de quadrilha foram terem postados em seus perfis de redes sociais fotos de pixações, grapixos e grafites, e por terem camisas, bandeiras e bonés que remetem à pixação. Além da ação por formação de quadrilha, pela qual eles já foram condenados, ainda que caibam recursos, alguns deles respondem por dano moral causado ao meio ambiente urbano em uma ação civil pública.
Para pixadores que faziam parte de torcidas organizadas essa disputa de território ganhava um componente ainda mais desafiador com a rivalidade futebolística. Pela cidade espalhavam-se presas (assinaturas) como CMA, do Comando Máfia Azul, TOG, da Torcida Organizada Galoucura, e tantas outras. “Rolava briga direto entre as galeras dos bairros, mas não quando a gente tava reunido dentro da mesma torcida; aí geral se unia para ser mais forte que o rival. Aliás, o ‘maria’ dirigido aos cruzeirenses [xingamento homofóbico e sexista usado ainda hoje] vem de uma interfência feita no F, transformado em R, de uma pixação de Máfia Azul. Era eles pixarem Máfia Azul, logo depois tava escrito em cima”, lembra ele.
A estética também não tardou a ocupar outros espaços — especialmente os voltados à música —, fazendo-se presente na comunicação visual de casas noturnas e filipetas de festas dos extintos Estrela, Butecário, Broadway e tantos outros.
MC Papo, Trecho de “Lembranças de moleque (Eu pixava sim)”, 2007
Eu pixava sim, e curtia muito
Eu me lembro bem, de cada segundo
Eu pixava sim, e curtia muito
Eu me lembro bem, de cada segundoAntigamente a noite caía
Eu saia de rolé
Pulava o portão, de tala na mão
Tu sabe como é que éUm rolo de trinta, cheio de tinta
Eu rasgava as madrugadas
Subia no teto, e no viaduto
Tá ligado na parada
PM pegava, me esculachava
Pintava minha cara e me humilhava
Mais eu não parava, eu continuava
Por que alguma coisa me hipnotizava
Moleque nervoso, periculoso
Me divertia de montão
Hoje eu parei, mais tá na memória
Os momentos dessa zuação!
“EU SÓ QUERO É SER”
Como RP da Galoucura, Murari fez incontáveis viagens pelo Brasil, muitas delas aos subúrbios cariocas. A amizade entre as torcidas organizadas garantia a hospedagem e o transporte “a gente combinava um valor menor da passagem direto com o motorista do ônibus. Íamos em sete, dez, doze pessoas”, revela. Na volta, a bagagem vinha recheada de fitas cassete com um pot-pourri de funks, ou de raps, como eram chamados. Rap da Felicidade, Rap do Silva, Rap do Salgueiro, Rap da Armas (parapapapará-tchibum!)… Nas letras, em geral, um pedido de paz nas comunidades. A presença de milícias já era uma realidade, a repressão policial desde sempre se fazia presente e começavam a ganhar força planos de criar uma sede própria do BOPE — Batalhão de Operações Policiais Especiais, o que viria a ocorrer em 2000. “Geral já tava ali cantando suas questões, eu só quero é ser feliz, andar tranquilamente na favela onde eu nasci”, diz.
Quando as fitas chegavam a Belo Horizonte, elas eram copiadas e se alastravam entre os integrantes das torcidas, posteriormente entre as galeras dos bairros. Faziam também a trilha sonora de bailes realizados nas sedes das entidades. “Isso rolava Brasil afora. E misturava os raps todos, tipo Racionais MC’s e os que depois passaram a ser chamados de funk carioca. Aliás, os Racionais começaram foi fazendo show direto na Torcida Jovem dos Santos”, lembra. Atrações ao vivo, vindas do Rio, também marcavam presença por aqui. Com ingressos um quarto do valor das Quadras do Vilarinho — ou até mesmo com entrada gratuita — o sucesso nas sedes era garantido.
Dos bailes e das cassetes, as músicas rapidamente ganhavam vida nos estádios, em suas versões originais ou “sampleadas”. “Time de preto, de favelado, mas quando joga o Mineirão fica lotado” fazia sucesso entre atleticanos; “dança, dança, dança; dança da bundinha, aqui no Mineirão o galo virou galinha” era um entre muitos funks entoados pelos cruzeirenses. “Ah, eu tô maluco” e “uh, tererê” ecoaram por diferentes estádios, tornando-se gritos de guerra de grande longevidade.
“DJ, PEDE A PAZ QUE VEM A LIBERDADE”
As disputas entre comunidades, cantadas nos próprios funks, ganhavam também o corpo a corpo das pistas, com brigas entre grupos de bairros rivais invariavelmente eclodindo nos bailes. “Uma galera não podia encontrar com a outra, era treta na certa. Isso da violência é uma coisa que marca todo esse processo, não só entre as galeras de bairro, da polícia também. Ela não podia ver cinco pessoas juntas que já ia dar dura. Você andava de galera para não ficar boiando na rua, porque se uma rival te visse sobrando, aí já era. Quando a violência da polícia apertou, obrigou a pessoa a deixar de andar de galera”, afirma.
Uma alternativa aos bailes passou a ser as barraquinhas de bairro, que já eram realizadas com frequência, chegando até a uma edição a cada fim de semana, dependendo da época do ano. Geralmente organizadas pelas igrejas, lideranças comunitárias ou até políticos, elas convergiam em barracas de comidas e bebidas produzidas pelos próprios moradores (cachorro quente, caldos, caipifrutas, etc.,), equipamentos de som e DJs locais. Eram especialmente frequentadas pelas galeras que queriam dançar funk ou flash house, mas não somente.
“Nas barraquinhas do Céu Azul, onde eu nasci e cresci, tinha também banda cover e banda autoral, artistas locais e nacionais. Já as maiores e não religiosas eram todas na ‘Avenida’ [Avenida Antônio José dos Santos], com som mecânico e músicas da moda; axé, os melôs, Claudinho e Buchecha. Juntava todo mundo para dançar igual, fazer os passos de galera. Como o bairro é afastado do Centro, você morava lá, estudava lá, paqueras rolavam lá, você conhecia todo mundo. Ninguém tinha carro para sair, nem ônibus de madrugada, então você tinha outra relação com a cidade, de conseguir acessá-la. Chegar ao Centro era 1h30 de ônibus, quase 2h no horário de pico”, conta Anna Karina, que diz ter frequentado as barraquinhas até o final dos anos 1990, início dos 2000, quando já dava muita briga e “o clima pesou”. “Lá hoje perdeu essa cultura da barraquinha, até porque o bairro mudou. Não tem mais isso de todo mundo dançar na rua em dias de calor ou ir para Avenida dançar de galera”, afirma.
Quando as barraquinhas (ou feirinhas) de bairro ainda estavam no auge, era lá que ia o MC, letrista e rapper Shabê — que faz dupla com Dokttor Bhu, músico, produtor, ator e um dos fundadores da banda Divisão de Apoio, primeiro grupo de rap de Belo Horizonte a utilizar instrumentistas em seu trabalho. “Eu morava no bairro Guarani [região Norte], e lá na adolescência, nossa vida era jogo de botão, jogar bola na rua, quadrinhos, masturbação e, no fim de semana, você ia dançar nas barraquinhas. Tocava muito Snap!, Technotronic, DJ Joseph e DJ A Coisa eram referência também”, conta. Foi nas tantas idas às barraquinhas que aprimorou o estilo de dançar e, de lá, passou a frequentar as matinês de domingo de danceterias como Phoenix e Hipodromo, que recebiam ônibus cheios das galeras dos bairros. “Mesmo tímido eu passei a ir direto. A dança te transformava, as pessoas te viam, você conseguia ficar com as meninas. Hipodromo para mim era classe média alta. Quando entrei pela primeira vez foi um choque cultural, as roupas eram diferentes, o cheiro das pessoas era diferente. Se na Phoenix era só para dançar, total disposição na pista, lá na Hipodromo você via a classe média alta só olhando, sem dançar, ficava ali pagando de bonita. Havia uma rivalidade latente, você podia sentir a tensão e cortar com uma faca”, diz.
Foi exatamente em uma das matinês da Hipodromo que Shabê presenciou quando “todo mundo parou para ver uns meninos dançarem com roupas diferentes”. Eram os Caçadores de Estilos, um dos mais significativos grupos de dança de rua de Belo Horizonte na década de 90.
Shabê também chamou atenção com suas coreografias e foi convidado a integrar o grupo, que chegou a ter um cover, ser convidado para se apresentar nas quadras da escola de samba carioca Beija-Flor e alcançar a final do concurso de danças promovido pelo programa Xuxa Hits, da TV Globo. “Dança de rua, b-boys, isso era de BH. Os dançarinos daqui humilhavam. [O grupo] You can dance não dançava nada! Até porque técnica qualquer um tem”, avalia ele.
A cultura de dança de flash house por aqui era bastante forte, especialmente nos anos 1990, com grupos como Fama, Dance Machine, Gyrus, todos desenvolvendo um estilo próprio. Contavam com apoio das academias, que cediam espaço, das danceterias, que muitas vezes patrocinavam os grupos, e das lojas da Galeria Praça Sete, que cediam as roupas. Foi na Galeria – “point do povo do rap, do funk e do soul” – que Shabê ouviu “vocês são muito ruins, mas até meu filho gosta de vocês”. A frase, a la Julinho do Adelaide às avessas, foi dita por Mauricio, dançarino de brown e dono de uma loja de disco que vendia fitas VHS piratas com “clipes das músicas que todo mundo queria aprender a dançar”. “A gente se apresentava direto na região Leste, mas não tinha muita noção da cultura hip hop. O pessoal ficava puto com a gente lá. Depois que fui conhecer mais o rap, que então chamávamos de hip hop dance. Conhecer e me apaixonar, experiência que mudou minha vida e muda a cada dia”, lembra o rapper, que ainda hoje, mesmo que um pouco tímido, faz a pista parar para vê-lo dançar quando tocam os antigos sucessos daquela época.