Revista Marimbondo

Os que vão morrer aos mortos

A história do Cemitério do Bonfim se confunde com a história de Belo Horizonte. Inaugurado em 7 de fevereiro de 1897, alguns meses antes da inauguração oficial da nova capital mineira, o espaço de mais de 170 mil metros quadrados, localizados numa antiga fazenda outrora chamada Alto dos Meneses, foi pensado e planejado paralelamente ao planejamento e à construção da própria cidade, como o espaço exclusivo (e, ao mesmo tempo, excluído, já que fora da área delimitada pela Avenida do Contorno) para os mortos da região.

É interessante notar que, ainda que tenha sido o único cemitério previsto no plano original da cidade [!], o Cemitério do Bonfim foi o terceiro lugar destinado a inumações. Antes de sua inauguração, os sepultamentos do Curral Del Rey eram feitos no átrio da Igreja da Boa Viagem. Posteriormente, um cemitério provisório foi criado no centro da cidade, no quarteirão formado pelas ruas Rio de Janeiro, Tamoios, São Paulo e Tupis. Pode-se dizer que a construção do Bonfim fornece uma série de indícios sobre o processo de consolidação da nova capital. Se, por um lado, constrangimentos financeiros atrasaram sua construção [!], por outro, a mentalidade essencialmente moderna que motivou a construção de Belo Horizonte como uma cidade planejada – o que inclui, obviamente, a observação de uma série de cuidados sanitários – demandava com urgência um lugar para os mortos que fosse, ao mesmo tempo, fora dos limites urbanos e executado sob os mesmos padrões.

[!] Atualmente, Belo Horizonte conta com quatro grandes cemitérios públicos municipais: além do Bonfim, os cemitérios da Paz, da Consolação e da Saudade.

Embora inaugurado em 1897, a primeira inumação realizada data de 1895. Segundo relatório do então prefeito Bernardo Monteiro ao Conselho Administrativo da Capital, sobre seu mandato (1899-1902): “o cemitério, conquanto se mantenha limpo, não satisfaz as condições reclamadas pela cidade. É indispensável murá-lo (…) a falta absoluta de recursos não permitiu, bem a meu pesar, fosse feita essa obra, imprescindível, de necessidade palpitante” (1902,p.156)

O cemitério foi planejado pela mesma comissão de engenheiros – Hermano Zickler, José de Magalhães e Edgard Nascentes Coelho – responsável pela construção da cidade e reproduz, tanto na forma quanto no “conteúdo”, a organização prevista para a capital. É formado por 54 quadras separadas por alamedas principais e ruas secundárias, sendo que algumas se destacam pela “exclusividade”. A quadra 18, por exemplo, é destinada, quase que exclusivamente, à inumação de grandes figuras públicas [!]. Próximo à praça central do cemitério, é reproduzido, na necrópole, o espaço administrativo que a Praça da Liberdade representava para a metrópole. Além de políticos, é possível encontrar ali túmulos de figuras religiosas que atraem fiéis em busca de graças diversas, como Padre Eustáquio, Irmã Benigna e Menina Marlene.

[!] Entre os sepultados nesta quadra, estão Otacílio Negrão de Lima (deputado e ex-prefeito), Silviano Brandão (ex-governador de Minas), Augusto de Lima (ex-deputado), Bernardo Monteiro (ex-prefeito), Raul Soares (ex-governador, deputado e senador) e Olegário Maciel (ex-governador, deputado e senador).

É interessante notar que o cemitério do Bonfim permaneceu, entre os anos de 1895 e 1942 – quando foi inaugurado o Cemitério da Saudade, o segundo da capital, destinado principalmente às famílias de baixa renda – a única necrópole da capital que recebia corpos de quaisquer pessoas, independente de classe social. O problema imposto aos administradores não era pequeno, já que a maior parte dos habitantes não poderia arcar com as despesas de um sepultamento adequado. A solução encontrada pelo então prefeito Bernardo Monteiro foi um convênio firmado, em 1902, com a Santa Casa de Misericórdia. Segundo Monteiro, “os enterramentos dos indigentes, que não são poucos, se fazem, na forma do contrato, gratuitamente, pela Empresa”.

A cidade dos mortos, assim como a dos vivos, deveria ser compartilhada entre membros de diferentes classes sociais, mas o Cemitério do Bonfim prova, a despeito dos ideais modernos que inspiraram a construção de Belo Horizonte, que as pessoas não nascem iguais e, definitivamente, não se tornam iguais na morte. Já que uma das principais características dos espaços urbanos contemporâneos é a distinção social de classes que se reflete no estilo e nos materiais utilizados nas construções privadas, seria óbvio que esta distinção se manifestasse também na “morada definitiva”. Como observa o historiador Abílio Barreto a respeito do cortejo da jovem Berta de Jaegher, então com 20 anos, primeira pessoa a ser sepultada no Bonfim, “(…) o saimento fúnebre, realizado a pé, conduzindo o corpo da primeira habitante do nosso campo santo, teve grande acompanhamento, pois a família de Jaegher pertencia ao número das mais ilustres de Belo Horizonte”. O luxo e suntuosidade apresentados em boa parte dos túmulos, jazigos e mausoléus das famílias mais abastadas da época contam com verdadeiras obras de arte, esculturas que chegam a cinco metros de altura, feitas em mármore, bronze, granito e outros materiais nobres. Esses contrastam com os túmulos anônimos dos indigentes, feitos apenas de pedra ou concreto, e cujas inscrições desapareceram há décadas.

ESPELHOS DE MÁRMORE

A inscrição na entrada do cemitério, Morituri mortuis, significa em latim “os que vão morrer aos mortos”, ou seja, os que vão morrer homenageiam os mortos, ou falam aos mortos. Além de seu valor artístico, a necrópole fornece um precioso testemunho de como vivíamos no passado e de como lidávamos com a morte em um tempo em que o luto era público.

Instalado num lugar de topografia elevada, com vista panorâmica para a cidade dos vivos, a cidade dos mortos era uma espécie de espelho daquela, refletindo sua dinâmica espacial e social. Nesse sentido, o cemitério do Bonfim pode ser tomado como exemplo de uma série de tendências esparsas, mas convergentes, observadas no Ocidente no que se refere às práticas mortuárias, e que tiveram seu exemplo mais bem acabado entre meados dos séculos XIX e XX. Em primeiro lugar, algo que hoje nos parece óbvio, mas que esteve ausente durante boa parte da história do ocidente cristão: o túmulo no exato lugar onde o corpo está enterrado.

Outra característica que só aparece no mundo cristão a partir do Renascimento são as lápides com inscrições funerárias. Segundo o historiador Phillippe Ariès, “a inscrição é antes de tudo uma ficha de identidade e uma oração”. O epitáfio se compõe basicamente de duas partes: uma, com o nome e data de nascimento e morte do defunto; outra, com alguma oração ou homenagem, ressaltando as qualidades ou realizações da pessoa quando viva, ou simplesmente uma inscrição ou prece para que a alma seja aceita no paraíso. A localização fora do perímetro urbano (é preciso lembrar que, durante boa parte da história ocidental cristã, os corpos eram inumados em igrejas ou propriedades particulares) e a preocupação com a contaminação associada aos cadáveres datam do século XIX.

Mas talvez a tendência mais marcante, associada ao romantismo europeu, seja o que Ariès chama de “culto aos mortos”: “o homem do século XIX não suporta o abandono dos mortos como se eles fossem animais; quer meditar no lugar das sepulturas que é preciso, portanto, identificar”. Trata-se, por um lado, de tornar os cemitérios um lugar de visitação e exposição; por outro, definir o que há para se expor e/ou visitar. É nesse período que se desenvolve, inicialmente na Europa, uma arte funerária com enorme multiplicidade de estilos. O túmulo não deveria apenas ser visível, mas impressionante, exortar o visitante à reflexão e/ou oração. As famílias mais abastadas construíam jazigos reproduzindo formas de capelas, edifícios públicos ilustres ou construções clássicas e neoclássicas. Além disso, esculturas de anjos, musas, cristos e santos, em tamanhos e materiais os mais variados. O exemplo mais famoso desse tipo de cemitério é o Pére Lachaise, localizado na França.

No caso do cemitério do Bonfim, é possível observar uma profusão de estilos: até a década de 1930, predomina um estilo alegórico, dramático. Nos anos 1950, o concretismo e o modernismo. A partir de meados dos anos 1970, o estilo kitsch, com materiais mais baratos e que não fazem referência direta à morte, passa a predominar. Em 1977, a sede do necrotério dentro do cemitério, ornado com símbolos cristão datados de 1902 e construído com materiais trazidos da Europa, foi tombada. Entre os anos de 2008 e 2010, a Prefeitura de Belo Horizonte, junto ao Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico de Minas Gerais (Iepha-MG), realizou um  inventário no Cemitério do Bonfim, que identificou e catalogou características recorrentes na maioria dos jazigos, um trabalho que, em 2012, se desdobrou na Visita Guiada ao Cemitério do Bonfim, um projeto da Fundação de Parques Municipais (FPM) em parceria com a Universidade Estadual de Minas Gerais (UEMG) e o Iepha, que convida o público a conhecer o “museu a céu aberto”.

É preciso ressaltar que, se os engenheiros que planejaram o cemitério foram os mesmos responsáveis pela nova capital, o mesmo se dá com os artistas responsáveis por decorar os túmulos nas primeiras décadas. Vários deles eram estrangeiros, com rígida formação acadêmica em escolas de renome na Europa, como o austríaco João Amadeu Mucchiut, que estudou em Trieste, na Itália. Segundo Marcelina das Graças de Almeida [!], no artigo “O Espaço da Morte na Capital Mineira”, Mucchiut realizou vários trabalhos na “cidade dos vivos”, como a decoração do altar-mor da Matriz de São José (1929), na fachada da Basílica de Lourdes (1916/22), no prédio dos Correios e no Palacete Borges da Costa (atual Academia Mineira de Letras). Outros artistas de destaque na decoração de prédios públicos, religiosos e particulares em Belo Horizonte, como os Irmãos Natali e João Scuotto, se dedicaram por décadas à arte funerária presente no cemitério do Bonfim.

[!] Publicado na Revista de História Regional 3(2) 187-191, inverno 1998.

Ao longo do século XX, enquanto a cidade dos vivos cresce, incorporando a área originalmente suburbana onde se localiza o cemitério, manter a morte afastada deixa de ser apenas uma preocupação de ordem exclusivamente sanitária. Tornou-se cada vez mais comum afastar a morte não apenas geograficamente, mas também (e principalmente) emocionalmente. Como bem observa Norbert Elias, em nossas sociedades contemporâneas, a atitude geral em relação à morte é a de um afastamento cada vez maior e mais asséptico dos moribundos e dos mortos para os bastidores da vida social. Segundo Elias, “nunca antes as pessoas morreram tão silenciosa e higienicamente como hoje, e nunca em condições tão propícias à solidão”.

Já não se morre em casa, já não se velam os corpos em casa. À medida que a expectativa de vida aumenta em nossas sociedades, a morte é relegada a um corpo técnico profissional cada vez mais especializado, compostos de profissionais de saúde, agentes funerários e outros. A teatralização pública da morte, tal como é representada nos túmulos e mausoléus do cemitério do Bonfim, com suas dramáticas figuras religiosas com expressões que vão desde a compaixão até o desespero, desaparece gradualmente ao longo do último século, o que se reflete na discrição e padronização dos cemitérios-parques surgidos a partir da década de 1950.

Porém, como observa o historiador Phillippe Ariès, nossa postura atual, de silêncio e discrição, “não aniquilou a morte, nem o medo dela. Pelo contrário, ela deixou retornarem sorrateiramente as velhas selvagerias, sob a mármara da técnica médica. A morte no hospital, eriçado de tubos, está prestes a se tornar uma imagem popular mais terrífica que o esqueleto das retóricas macabras. É que surge uma correlação entre a ‘evacuação’ da morte, último reduto do Mal, e o retorno dessa mesma morte, tornada selvagem. (…) A crença do Mal era necessária para domar a morte. A supressão da primeira levou a segunda ao estado selvagem”.