O carioca João das Neves, que adotou Minas Gerais a partir dos anos 1990, surgiu no teatro em um período de intensas mudanças no campo dessa arte no Brasil. Passado o período da modernização das artes cênicas do país, inicia-se uma fase de nacionalismo crítico – na definição de Jacó Guinsburg e Rosangêla Patriota – que discutia a conjuntura sociopolítica por meio de uma ótica revolucionária no momento da derrubada do presidente João Goulart, evento que revelava cada vez mais o estabelecimento incisivo da censura. Diante desse quadro, artistas buscavam alternativas para a produção teatral. João das Neves, nesse contexto, participou ativamente como diretor e encenador de clássicos que entraram para a história do teatro brasileiro, como os textos de Augusto Boal – Revolução na América do Sul –, a Antígona de Sófocles, traduzida por Ferreira Goulart, Jornada de um Imbecil Até o Entendimento, de Plínio Marcos, entre muitos outros. Conhecido e reconhecido como encenador, seu trabalho com o texto e como autor dramático apresenta qualidade igualmente impactante.
A primeira obra que li de João das Neves foi o seu diário de viagem, ainda inédito, ao Yurayá, na área Kaxinawá do Jordão, no Acre, escrito entre os anos 1990 e 1991. O diário não é um simples caderno de notas ou relato de viagem, mas também relato etnográfico com um trato literário raro. Nele é possível perceber algo que estará presente em sua obra dramatúrgica: uma sensibilidade para com o outro que perpassará por sua própria; uma sensibilidade atravessada e intermediada por um apuramento estético, pela escolha de palavras e por uma inquietude política e social. Da experiência nasceu o texto Yuraiá – O Rio do Nosso Corpo, ainda inédito nos palcos. Trechos do diário foram parar quase que integralmente no texto dramatúrgico, como em sua cena final, que captura o seguinte trecho do diário: “A silhueta das árvores destacadas pelo lindo filete de lua crescente formava no céu uma caprichosa sombra chinesa. As estrelas brilhavam com a intensidade que só têm na mata. Sentei um pouco do lado de fora, antes de dormir. Nessas horas a gente se sente pleno. Feliz. Não sei por que me lembrei da noite anterior quando já em minha rede, minutos antes de dormir, observava o Francisco sob a luz fraca da lamparina e depois de um dia exaustivo de trabalho, lendo com atenção e dificuldade a cartilha. Seu esforço ali, naquele fim de mundo, para aprender, me causou uma grande emoção. Acho que é dessa luz que as estrelas aqui se alimentam.”
Não parece aleatória a escolha do local de viagem, que pode soar exótica para alguns: anos antes, estava no mesmo Acre onde surgiu a encenação de Tributo a Chico Mendes, junto ao Grupo Poronga. A peça, como o próprio nome diz, é uma espécie de elegia ao seringueiro e ativista que lutava contra a oligarquia local a favor dos trabalhadores e do povo da floresta e pela preservação da Amazônia, assassinado em Xapuri em 1988, acontecimento de repercussão mundial. Ao narrar a trajetória de Chico Mendes, João das Neves desmembra a história, projetando-a no futuro e reconstituindo o passado. As primeiras falas do texto são “Atenção, jovem do futuro! Seis de setembro do ano de 2120. Aniversário, ou primeiro centenário da revolução socialista mundial”. Essa dinâmica passado-futuro que se encontra num presente ajuda a entender o local de enunciação do autor e sua posição de artista que não abre mão de si mesmo.
Em uma cena com um professor, seringueiros pedem a ele que os ensine a escrever empate – uma manifestação pacífica apregoada pelos seringueiros que consistia na proteção das árvores com a utilização do próprio corpo –, ao invés do tradicional começo com bê-a-bá, ave, ovo, avô – uma reivindicação pelos seringueiros que evoca os preceitos de Paulo Freire. A situação será modificada a partir da voz de Chico Mendes que invade a cena em off, mostrando que o professor é quem passará a ser ensinado a participar da vida daqueles alunos. É importante lembrar que nos diários supracitados, a prática de ensino, feita pelo próprio João é constante durante as viagens. Assim, haverá uma espécie de dialética que se estabelece entre quem deveria ensinar e quem deveria ser ensinado, um processo de transformação não só dos seringueiros, que aprendem a ler e a escrever as palavras, mas também do próprio professor que aprendeu a ler outro mundo.
Assim, não dá para deixar de notar outra vocação do teatro de João das Neves, que não se coloca como um artista no intuito de ensinar sobre alguma coisa, mas como alguém que traz o compartilhamento da arte para o centro de suas questões, algo que é ainda mais significativo tratando-se de teatro, em que o jogo entre público e atores num determinado espaço é de maior importância.
É nesse sentido que se pode observar um aspecto da dramaturgia de João das Neves marcada pelo caráter político, mas não de fundo moralizante; ela não reivindica para si verdades ou quer impor certos valores, crenças, saberes. Ela não cede facilmente para as conveniências de um discurso raso que pode se tornar moralista e parece atenta ao questionamento de Boal, que se irritava, ainda nos anos 1960, com a forte tendência de uma obra ser “julgada levando-se demasiado em conta as ideias progressistas ou reacionárias contidas no texto, transformando-se este no único padrão de excelência ou inferioridade. Basta que o autor manifeste solidariedade e simpatia aos negros, aos operários ou à mulher sacrificada para que a sua obra seja encarada com seriedade”.
Isso, entretanto, não quer dizer que João das Neves se exime de sua participação em uma mudança na sociedade, e pode acontecer aqui uma tentação de fazer uma ligação muito íntima com Brecht, de quem o brasileiro traduziu textos e os encenou. Obviamente, João das Neves também persegue um teatro popular, além de possuir algo que Sábato Magaldi apontava no alemão – “lucidez crítica demonstrada nas formulações estéticas” –, e adotar também certos procedimentos dramatúrgicos de que Brecht se valia. Em várias de suas peças infantis, o teatro narrativo (aquele que se denominará épico) invade o drama, mas não sem antes demonstrar o distanciamento que tão marcadamente caracterizou o teatro do autor de Mãe Coragem. Em O Leiteiro e a Menina Noite, por exemplo, é o narrador que aparece para anunciar a história e, várias vezes, a ação é interrompida por músicas. Em A Lenda do Vale da Lua, o mesmo procedimento do narrador é instaurado, mas o sistema de máscaras – utilizado por Brecht em ensaios e por Boal no palco – passa a se estender para o próprio acontecimento cênico: discutem-se o nome da história, o nome dos personagens e, depois, esses personagens mudam de atores.
Se existe uma moral na história, própria de teatros infantis, é impossível não perceber que não existe, mesmo no teatro infantil de João das Neves, uma ética sem uma estética, uma pedagogia não moralizante – e nem moralista –, mas uma pedagogia que se encontra também no contato com os perceptos e com os afectos. Em outra dramaturgia infanto-juvenil, Assembleia dos Ratos, de 1964, um de seus primeiros textos, traz para o palco infantil algo como uma alegoria da exploração dos mais fortes pelos mais fracos e todos os processos de combate e de acovardamento envolvidos no conflito entre os ratos e um gato que quer dominar a Ratolândia. Alegoria que voltará mais madura, dirigida a um público adulto, no seu texto possivelmente mais conhecido: O Último Carro.
Se o cinema brasileiro e boa parte da arte dos anos 1960 podem ser enquadrados numa alegoria do nosso país, como discutido por Ismail Xavier, O Último Carro, no âmbito da dramaturgia nacional, é uma espécie de Terra em Transe, de Glauber Rocha. O Brasil do texto de João é um trem desgovernado, sem maquinista, prestes a descarrilhar; a trama se descortina entre os personagens que não são necessariamente bons ou ruins, mas pessoas de um país que revelam a destruição das relações interpessoais (algo ainda tão atual); as relações de poder; a fé cega; as abusivas relações de homens sobre mulheres; os que se precipitam em agir e os que covardemente recuam diante da eminente catástrofe; todos esses são aspectos que compõem o painel do texto que, embora escrito na década de 1960, estreou na década seguinte. É o coro, lugar tão tradicional da dramaturgia para apresentar a voz do “povo”, que encerra a peça: “Ele era tão diverso do senhor, moço, e no entanto igual. / Ele ia para o trabalho de trem. E o senhor, moço, permita, como viaja? / De ônibus, carro, avião? Seu trem tem rumo? / Aonde o conduz? / À estação mais próxima? O senhor, moço, perdoe. / Qual é a estação mais próxima? / A mesma de ontem? A mesma de ontem? / A MESMA de ontem? / A MESMA DE ONTEM?”.
João das Neves, entretanto, se desloca, de estação a estação, muito resistente em chegar a um destino confortável. Um olhar geral para sua dramaturgia nos revela a tarefa de continuar percorrendo territórios diferentes: é como Sísifo, com diferentes montanhas a escalar. Nesse sentido, Mural Mulher talvez seja uma de suas obras mais significativas, e se apresenta como uma espécie de colagem a partir de “fotografias” da mulher contemporânea ao texto, onde suas questões são apresentadas. Sabiamente, a encenação é sempre entrecortada por vozes gravadas das próprias mulheres (e do público!): não é apenas uma forma de discutir um problema, mas também de deslocar o lugar de fala do próprio autor, cedendo espaço para que a mulher fale de si (e, por que não, para si também).
João das Neves, dessa forma, constrói um teatro que tenta falar com, e não falar sobre ou falar para. Ciganas, Donas de Casa, Operárias, Prostitutas, Domésticas, Cocotas, todas são colocadas em cena para um protagonismo de si e para a discussão de suas questões, do aborto ao mercado de trabalho, da prostituição à violência que o machismo provoca. Questões que hoje são urgentes (e já o eram na época) ganham atualidade não só temática, mas também pela forma que João das Neves as constrói. É nesse sentido, também, que o futuro pode ser entendido em sua dramaturgia.
Um futuro que, como dito, não prescinde do passado e não deixa de discutir o presente. A Pandorga e a Lei é um texto que representa um acerto de contas com a ditadura civil-militar que governou o país por mais de vinte anos. Seu apelo é que a memória do que ali aconteceu e do que ali foi silenciado não desapareça. Uma voz – voz anônima; voz de todos? – inaugura o texto: “Não se calem as vozes / Não se deixem calar / Que calar a esperança / É deixar de amar // Não se perca a lembrança / Não se deixe perder / Que perder a memória / É de novo morrer // Não se esqueçam os mortos / Não se deixe esquecer / Que olvidar nossos mortos / É deixar de viver”. Construído com painéis de diversas atrocidades e aleatoriedades do regime, o texto é um registro profundo das mazelas da ditadura para a história do país. A cena final, da tortura, exílio e morte de Maria Auxiliadora Lara Barcelos, a Dôdora, lembrada inclusive na posse da Presidenta Dilma, é das passagens mais tocantes que a dramaturgia brasileira já escreveu. João das Neves nos coloca diante da dor do outro – para roubar as palavras de Susan Sontag – e nos apresenta um teatro que ultrapassa o épico e chega ao ético, como refletiu Nicole Loraux. O apelo humanista nos emociona e nos impele a continuar acreditando que é a arte um dos meios mais importantes, não só para lembrar e significar o passado e para conseguir sobreviver ao presente, mas para a construção de um outro mundo, mais fraterno e mais solidário.
Tive a honra de ser um dos convidados a organizar os textos do autor para a “Ocupação João das Neves”, mostra que ficou em cartaz entre os meses de setembro e novembro de 2015 no Itaú Cultural, em São Paulo, e celebrou a vida e a obra do artista. João das Neves inaugurou a exposição que festejava seu nome, no dia 26 de setembro, sem esquecer das dimensões estético-políticas que estão implicadas na ética de sua obra: em uma fala questionou a criminalização por parte do Estado a um grupo de pichadores de Belo Horizonte. Na sequência, com uma lata de spray, escreveu na parede do centro cultural “Viva o MST”. Este texto é uma espécie de resposta à dramaturgia de João das Neves com que tive contato nos últimos anos.