Revista Marimbondo

Puta prum lado, viado pro outro

Em 17 de julho de 1976, pela primeira vez, um veículo da grande imprensa lançou um olhar sobre os bailes black que já se disseminavam pelo país. Sob o título de Black Rio – O Orgulho (Importado) de Ser Negro no Brasil, uma reportagem de quatro páginas “revelava” que, a cada final de semana, milhares de jovens se reuniam para dançar ao som dos brothers do soul, e atribuía aos bailes uma conotação de movimento cultural, com forte identidade coletiva. Mas se para boa parte dos leitores do Jornal do Brasil a aproximação com aquele universo era inaugurada pelas linhas da jornalista Lena Frias, para os frequentadores dos bailes a identificação precedia a representação no jornal ou na TV; e ia muito além do consumo de discos, do uso de roupas, penteados e acessórios.

Como no restante do país, em Belo Horizonte também já eram bastante populares os encontros que giravam em torno da soul music, geralmente realizados com pouca ou nenhuma estrutura. Entre localidades diversas e distantes entre si — como a Cabana do Pai Tomás, na região Oeste, a Vila Senhor dos Passos (antigo “Buraco Quente”), na região Noroeste, e os bairros São Benedito e Rio Branco, na região de Venda Nova, e tantos outros — havia um território comum: uma caixa de som, um “disco do Brown” e corpos em dança, assumindo a forma de festa. Celebração em encontros na rua ou na sala da casa de amigos, pelo som do vinil ou pela Rádio Cultura AM, sintonizada no programa Ritmos da Noite, do locutor Geraldão.

Dos muitos bailes black entornados pela cidade, o Máscara Negra afirmava-se como grande ponto de convergência entre seus frequentadores. Originado de um baile de carnaval, ele funcionava no primeiro andar de um prédio na Rua Curitiba, nº 482, no centro da cidade, em cima da — hoje extinta — loja Mesbla. “Era fácil de chegar, pegava um ônibus só. Para voltar não passava o noturno, então era só no outro dia de manhã. Mas como tinha linha para todo mundo, a gente podia relaxar e curtir sem pressa”, lembra Arildo da Cruz, nascido no ano do Golpe Militar e já frequentador do espaço em meados dos 70. “Lá não podia de menor, mas eu fazia cara de mau e minha juba black power enganava”, diz.

Com residência em Venda Nova, Arildo só veio a conhecer o centro de Belo Horizonte na adolescência. “A gente aprendia a dançar era ali mesmo no bairro, pelo som na caixa da vizinhança, imitando o amigo da sua rua, vendo o irmão mais velho dançar. Cada dia você ensaiava na casa de um. Tinham os passos e tinha a roupa também. O estilo a gente conhecia pela capa dos compactos, dos LPs. Disco era caro para gente, mas todo mundo emprestava o que tinha, ia passando de mão em mão, de vitrola em vitrola. A roupa, você encontrava o tecido e costurava — calça, blusa, tudo —, e já ficava ansioso para chegar o dia de ir pro som e fazer estilo”, conta.

E aí, fulano, você vai pro som hoje?
‘Tô lá!’ Essa era a gíria. Baile era nome de festa de gente de idade.

Para completar a imagem que espelhava os artistas das capas dos discos, quase sempre havia um Vulcabraz 752 a deslizar na pista do Máscara Negra. Ainda assim, tinha quem sonhasse com coturno, “uma bat boot que o pessoal de roupa rasgada [punks] depois veio a usar bastante. Se você chegasse no Máscara com uma dessa, todo mundo já crescia o olho, dava respeito”, lembra Arildo.

Em tempos de ditadura militar e atos institucionais, a gandola era outro item desejado. “Muita gente comprava, arrancava o emblema e a patente do exército e usava ela toda verde. Agora você imagina que provocação usar roupa militar naquela época!”, diz, sem esconder a satisfação. “Nos anos 70, esse pessoal [punks] não usava muito não, era a gente que encarava. Só que se os ‘periquitos’ [apelido que davam aos militares] passassem na rua, eles arrancavam as gandolas da gente”.

Especialmente ali no Máscara Negra, o gatilho para a violência prescindia de uma suposta transgressão. “Lá frequentava mais é gente escura, praticamente não entrava branco, então a polícia batia lá direto, descendo o pau mesmo. Queria nem saber, já entrava gritando ‘viado prum lado, puta pro outro!’. Tinha policial que chegava dando geral nas mulheres, ia enfiando e passando a mão em tudo. Perguntava pra gente ‘por que você está vestido assim, que cabelo é esse?’ Mandava cortar o som. Aí você já levava um tapão na orelha, um soco na boca do estômago, eles implicavam com calça pantalona, com o colorido, com o xadrez, mandavam cortar o cabelo e, se vissem a gente com ouriçador, aí tava perdido”, conta. Muitos ouriçadores eram confeccionados de forma caseira, com aros de bicicleta inseridos, um a um, em um pedaço de madeira, funcionando como uma espécie de garfo usado para moldar o penteado black power. Já para polícia, eram vistos somente como arma e justificativa para detenção.

Quando a gente que é negro se veste com o estilo que a gente gosta, o povo já te olha torto. E isso é até hoje. Deixa eu pentear esse meu cabelo, passar um gel aqui e espetar só de um lado, pensa quantas pessoas vão me olhar esquisito na rua.

Quando o baile fluía, sem “visita” da polícia, a pista era ocupada democraticamente; homens e mulheres a exibir seus corpos e movimentos. “Tinha a hora da música lenta, depois uma época chegou até a misturar um pouco de funk de discoteca, pro pessoal que curtia fazer passinho igual. Mas o brown é que mandava de verdade. Era quando cada um podia se mostrar, era quando todo mundo podia te ver. Juntava no meio, cada um dançando do seu jeito e tentando se soltar mais que o outro. Você já dava aquela escorregada para dentro da roda e o outro saía, ele entendia que você tava melhor, como se fosse um desafio mesmo. Era como disputar numa roda de capoeira, um movimento ia puxando o outro, fazendo uma dança junto com quem tava na roda, mas sem ser coreografia ensaiada, mais como como na capoeira mesmo”, diz.

No final dos anos 80, o Máscara Negra deixou de ser a bola da vez, assim como vinha ocorrendo com outros bailes que acabaram fechando, como os da União Síria (extintos em 1979) ou os realizados no salão de festas do Conjunto IAPI, na Lagoinha. Há quem credite esse fim a modismos da época, como o sucesso da disco music e do rock nacional, mas Arildo acrescenta o medo generalizado da população de transitar na região, especialmente à noite. Segundo ele, o clima de insegurança se devia à existência do “Esquadrão do Torniquete”, grupo de extermínio — formado por dois taxistas, um policial civil e um policial militar — que ganhou notoriedade ao assassinar em sequência 27 pessoas, em sua maioria por enforcamento. “No início dos anos 90, a gente foi primeiro dançar brown nas Quadras do Vilarinho. Como o centro ficou perigoso de ir, todo mundo morrendo de medo do torniquete, a gente ia também para o Sorven, do Dirceu Pereira, lá em Venda Nova”, narra.

A disputa, antes essencialmente dos corpos na pista, agora chegava também às vias de fato. “Foi lá onde eu mais briguei. Nessa época, o pessoal do Vilarinho não podia subir para o Sorven e vice-versa. Era uma disputa de território e de som, porque o Vilarinho era mais funk, desses de ensaiar dança, Pump up the Jam; o Sorven era mais breque, brown. Aí a gente se encontrava na pracinha do Vilarinho para brigar, era que nem Atlético e Cruzeiro. A diferença é que, antes, você podia me encontrar, me bater e depois passar perto de mim e não ter problema. Eu apanhava porque eu não dei conta. Hoje não, se a gente brigar, dois minutos depois você volta e me dá um tiro. Hoje a disputa mudou, né?”.

Todo mundo tem um pouco de James Brown nas pernas, no peito. Não tem um ser humano que quando toca Brown a pessoa não mexe. Para mim, é a única coisa que não sai de moda, que não acaba nunca.

 

CORAÇÃO QUE BATE, CORPO QUE DANÇA
“Antigamente, discoteca dava confusão, mas a gente ia assim mesmo. Porque o negócio era dançar”, conta Ednei Nonato, cuja desenvoltura nas pistas ele garante vir de infância. “Eu tinha só quatro anos [em 1983] e me levaram na Discoteca do Mizael [!], uma academia de dança que ele abriu ali na [Rua] Capivari, na Serra. Eu dancei demais! Mas é que meu pai é artista, tocava acordeon com Barrerito, minha mãe sempre dançou e levava a gente na Quadra Minas Esporte Bar, em Venda Nova, onde eu nasci e moro até hoje. É herança de família”, ele diz.

[!] Mizael Santos é fundador da Rádio Favela (104,5 FM), colocada em funcionamento em 1976 e voltada especialmente para talentos da comunidade do Aglomerado da Serra, onde está localizada. Até receber autorização, em 2001, era alvo permanente da polícia, tendo sido fechada oito vezes. Em 2002, sua história foi contada no cinema, por meio do filme “Uma onda no ar”, de Helvécio Ratton.

 À época — e, ainda hoje, em algumas regiões da cidade — as quadras esportivas eram um dos escassos endereços para diversão. As balzaquianas Quadras do Vilarinho, na Região Norte, nasceram inclusive como uma “oportunidade de investimento num lugar sem opções de lazer”, afirma o proprietário Francisco Filizzola. “Resolvi criar ali um negócio construindo quadras de futebol de salão pra serem alugadas durante a semana. Só que já no ano seguinte, em 83, me pediram para fazer festas de black nos fins de semana, pro pessoal ter onde dançar, onde se encontrar. Teve preconceito até de moradores da região, mas combinei que faria um teste”, lembra. Hoje, o espaço chega a receber 6 mil pessoas nas matinês de domingo, especialmente quando há apresentações de MCs conhecidos. Eventualmente há apresentações de dançarinos no palco, mas é na pista que se dá o encontro de corpos a marolar (ver “Em alto e bom som”).

Mais comum que hoje, nos idos de 1980 as quadras frequentemente promoviam apresentações e concursos de dança, especialmente os de jazz e de black —, algo que, na década seguinte, se tornaria comum também em escolas de dança na Zona Sul e em grandes shoppings centers, como Central Shopping e Shopping Del-Rey. “Para participar a gente mesmo criava a coreografia e treinava na rua de casa, às vezes enchia de vizinhos só para ver. Sexta-feira você tava ensaiando, sábado e domingo de manhã jogava um futebol na rua e, no final de tarde, tinha encontro marcado nas matinês, para se apresentar e curtir. No meu bairro era assim”.

No icônico Máscara Negra, Ednei chegou a ir uma única vez, aos 17 anos, dançar brown, mas não voltou por medo da “rigidez” da polícia. “Dançar black era como dança de marginal. Se tinha cabelo grande era marginal, se usava boné era marginal; polícia parava e batia, mandava cortar o cabelo”. Nos 1990, diz que, como ele, muita gente migrou do jazz e do black para a “festa mix”, como ele nomeia os encontros onde tocavam artistas e grupos estrangeiros como Technotronic, Snap! e MC Hammer. “Até 94, em Santa Luzia tinha muito concurso ao ar livre desse ritmo; virou uma febre e você ia era de galera. Mesmo assim, no fim das festas mix não tinha jeito, sempre tinha o brown, tocava um black”, lembra.

Para correr atrás do dinheiro, como ele diz, abandonou o soul, mas, depois de viúvo, sentiu necessidade de voltar. “Uns três anos atrás vi pessoas dançando black num programa da Rede Minas e decidi frequentar o Baile da Saudade [!], em Venda Nova. Agora que voltei não paro mais porque, como te disse, é de sangue, é de família, é quem eu sou”, diz, durante uma pausa para tomar um respiro entre uma música e outra, na pista da Casa da Piscina, espaço localizado entre os bairros Santo André e Pedreira Prado Lopes, Região Noroeste, que aos sábados promove encontros ao som do “bom e velho James Brown”.

[!] Criado em 1983 por um grupo de amigos saudosos dos bailes de black music realizados no Centro de Belo Horizonte, como Máscara Negra e União Síria. Após em 2013 deixar de ter endereço fixo — sendo o mais famoso deles a danceteria Flashdance, em Venda Nova —, locais como Centoequatro, no Centro, e Granfinos, no bairro Santa Efigênia, já receberam edições do Baile da Saudade.