A rua não é palco nas intervenções urbanas de dois grupos belo-horizontinos de teatro. É ela mesma: sem pudor em relação ao cotidiano estabelecido, nas ações do agrupamento Obscena, criado em 2007, e explícita, no nome do projeto que, em 2010, deu origem ao coletivo Paisagens Poéticas: “O Nome Disso É Rua”.
OLHE
Paisagens Poéticas são ações cênicoperformáticas para sensibilizar o olhar dos passantes. O foco do coletivo que leva esse nome é direcionado para grupos de pessoas associados mais diretamente ao espaço público, como moradores de rua, engraxates, carroceiros e familiares de desaparecidos.
“Como uma cidade continua após uma pessoa simplesmente desaparecer? Achamos que nossa cidade não pode esquecer as dores que suas ruas contam”, escreveu o grupo no convite para a homenagem a Pedro Augusto Santos Prates Beltrão, desaparecido aos 11 anos, em 2006. Mais de cem pessoas compareceram a uma praça no centro da capital, colorida com balões e animada por uma fanfarra. Uma das brincadeiras oferecidas às crianças foi confeccionar tsurus com cartazes que restaram da busca por Pedro. Esse monumento vivo compôs a primeira paisagem, criada durante o 10º FIT (Festival Internacional de Teatro de Palco e Rua de Belo Horizonte), em 2010.
Numa outra praça, também por meio de um cartaz, a cidade procura-se, para encontrar-se nas imagens dos rostos de cada pessoa que se deixou fotografar na ação “Lambe Lambe”, realizada por Clóvis Domingos e Leandro Acácio, do Obscena, durante o evento “Galpão Convida – Edição Especial Teatro de Rua: Ocupe a Cidade”, em maio deste ano.
A dupla fez mais do que bater fotos. “Realizamos a ação de conversar com as pessoas e fotografá-las, no bairro Lagoinha, e foi muito bom estabelecer com elas uma relação de proximidade, escuta e criação de um momento cênico-performático”, escreveram os artistas, que, posteriormente, enviaram pelos Correios os retratos com cartas de agradecimento e reflexões sobre a ação, revelando que cada pessoa é a cara da cidade.
PARE
Além da identificação com o espaço, outras ações cênico-performáticas colocam em questão a relação entre as pessoas. Na rua, deslocada do lugar de passagem para o de convívio, pode-se até visitar alguém, como fi zeram os integrantes do Paisagens Poéticas a três engraxates da capital envolvidos no projeto “O Nome Disso É Rua”. Os atores “visitaram artisticamente” os pontos de trabalho dos senhores Juvenil, na Savassi, José e Otávio, no Centro. Criaram instalações com sapatos doados ao projeto para “destacar e ressignificar o local de trabalho, o ofício e cada uma das pessoas que habitam cotidianamente aquele lugar”.
Os artistas Leandro Acácio e Saulo Salomão, do Obscena, receberam visitas em sua Kaza Kianda, construída por eles com objetos recolhidos nas ruas, debaixo de uma marquise na Avenida Santos Dumont – onde um casal de Ibirité entrou, sentou para um café e acabou contando um pouco de suas vidas. “Despediram-se prometendo: ‘Amanhã a gente passa aqui’”, contou Saulo em entrevista à Marimbondo.
Houve também quem parasse para tentar entender o significado daquele espaço. “Afinal, foi uma instalação que confundiu um pouco as pessoas, isso porque ficou ‘entre’ um lugar de moradores de rua ao mesmo tempo que era habitada por jovens belos e bem vestidos…”, analisou o visitante — e colega de agrupamento — Clóvis.
TRAVESSIA
Enquanto lugar cênico dos dois grupos, a rua é atravessada por questões que não fazem referência direta ao espaço urbano, mas à esfera pública em geral — como as formas marginalizadas de gênero e sexualidade.
Na ação performática “Baby Dolls”, as integrantes do Obscena Nina Caetano, Erica Vilhena, Joyce Malta e Lissandra Guimarães “tentam desorganizar os estereótipos que se reproduzem em torno da imagem da mulher e da noção de feminino, tendo como eixo de discussão a fabricação da mulher padrão”.
As bonecas, que representam os papéis dominantes na sociedade contemporânea — de mãe, prostituta, noiva, loira e rainha do lar — irrompem no fluxo cotidiano do espaço urbano. Ao final, têm seus corpos mortos marcados a giz no chão, como nas cenas de crime, mas preenchidos com escritas.
Um outro significado para boneca, travesti no dialeto das ruas, é colocado em questão pela mais recente ação do Paisagens Poéticas. A “Gangue das Bonecas” é um grupo de estudos formado por integrantes do coletivo e frequentadores do Centro de Referência da População de Rua de Belo Horizonte.
“Com seus corpos, com as suas identidades, com seu misto incrível de sexualidade e gêneros”, o grupo também cria ações poéticas como “Salto Alto”, realizada durante a 14ª Parada do Orgulho LGBT (Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis, Transexuais e Transgêneros) de Belô. De saltos altíssimos — baldes metálicos presos aos pés, como pernas-de-pau —, dois integrantes puxavam o restante da gangue, uma dezena de pessoas, todas fantasiadas com roupas e adereços coloridos, em direção à concentração do evento, na Praça da Estação.
A turma destacou-se na multidão. A cada passo eram abordados por pessoas pedindo para tirar fotos deles e com eles. Atraídos não apenas pelo colorido e brilho de suas roupas, mas também pela alegria em seus sorrisos — acredita esta repórter, que acompanhou a intervenção.
SIGA
Essas ações, enquanto se desvanecem na rua, propagam-se na internet. O coletivo Paisagens Poéticas mantém on-line o site do projeto “O Nome Disso É Rua”, e o agrupamento Obscena atualiza constantemente o blog com links para antigas e futuras intervenções.
ATROPELAMENTO
Não é sempre, porém, que uma intervenção acaba em festa na rua. Em Belo Horizonte, as ações artísticas estão cada vez mais expostas ao atropelamento pela privatização e pela regulação excessiva do espaço urbano. Uma tendência agravada em razão dos preparativos para a Copa do Mundo de 2014, cuja organização, entre pressões da FIFA e interesses de governos e empresários, submete as cidades-sede dos jogos a medidas de controle e gentrificação.
Esses atropelamentos nem sempre fazem das ações cênico-performáticas vítimas fatais. Pelo contrário, costumam acentuar sua potência criativa. O Obscena sentiu a privatização na obrigatoriedade de autorização — nem sempre concedida — para intervenções artísticas em praças e o controle no impedimento, por guardas, de gestos como riscar a calçada com giz. Fez dessas situações mote para a pesquisa intitulada Corpos públicos, espaços privados: invasões no corpo da cidade, contemplada pelo edital Cena Aberta, do Centro Cultural UFMG, onde o agrupamento atualmente realiza uma residência artística.
Numa das intervenções, fios amarelos foram amarrados no pequeno vão entre uma lixeira e um poste, e neste foi pregado um cartaz com os dizeres “ENTRE A CIDADE”. Um policial reagiu: “Sabe que podemos enquadrar em poluição visual e pichação?”, anotou o autor, Davi Pantuzza.
Essas “paisagens sitiantes”, como as nomeou Davi, refletem, dentre outros, o cerco à Praça da Estação — fechada com grades durante a Copa do Mundo de 2010 para transmissões de jogos de futebol e shows promovidos pela empresa transnacional Coca-Cola e pela Prefeitura. Cerco que foi furado por integrantes do Paisagens Poéticas. Saindo de um evento nas redondezas, atores do grupo dirigiram-se à “arena”, cujo acesso estava liberado, dada a ausência do Brasil em campo — em dias de jogo da seleção brasileira, a entrada era trocada por 1 kg de alimento não perecível.
Ficaram ali convivendo com moradores de rua presentes, até que apareceram outros, conhecidos do Centro de Referência. Nesse encontro casual, artistas e moradores de rua gritaram de felicidade ao avistarem-se, depois se abraçaram e conversaram, formando uma paisagem. “Naquele momento nós obrigamos a cidade a ver que é possível resistir à privatização, ao domínio imperialista, à desigualdade acachapante, à solidão, à distância imposta pelo preconceito e pelo medo. Éramos dois grupos convivendo, não éramos dois times competindo pelo seu espaço”, escreveu um dos atores.