Revista Marimbondo

Seguiremos em festa

A festa é um momento breve, mas potente, de ruptura com a vida cotidiana, de suspensão e subversão das regras vigentes, uma fresta que, livre “de toda finalidade prática, fornece o meio de entrar temporariamente num universo utópico”, como nos diz Bakhtin. Se, por um lado, tal trégua renova a disposição para o trabalho, por outro, traz o risco de a experiência converter-se em ruptura definitiva.  Não é à toa que, desde a colonização, a relação das autoridades brasileiras com as festas populares é ambígua, transitando, muitas vezes, entre a aprovação vigilante e a repressão.

As tentativas de normatizar tanto a festa quanto a ocupação dos espaços públicos estão presentes ao longo da história da capital,que surgiu a partir dos ideais positivistas de ordem e progresso. Em 1923, a Lei Municipal nº 263 estabelecia que “os bailes públicos, compreendendo-se como tais os que dependem da licença da polícia para o seu funcionamento, pagarão, por baile, o imposto de 50$000 no carnaval e 20$000 fora desta época” (ver Marimbondo Rua)Na década de 1950, apenas em uma data eram permitidos os batuques públicos: 15 de agosto, dia da padroeira Nossa Senhora da Boa Viagem. Por esse motivo, é nesta data que, desde 1957, é realizada uma festa em homenagem a Iemanjá na beira da Lagoa da Pampulha.

Assim como as tentativas de normatização, a reivindicação da festa, ora espontânea, ora planejada, perpassa a trajetória da cidade. Em 1897, ano de fundação da capital, operários que construíam a “ Cidade Jardim” – um dos epítetos pelos quais Belo Horizonte já foi conhecida –, deixaram as ferramentas de lado, enfeitaram carroças e fizeram um desfile carnavalesco improvisado pela Praça da Liberdade. A festa, no entanto, já estava aqui bem antes, nas festividades negras das fazendas escravagistas que conformavam o antigo Curral Del Rey.

PRAÇA QUE NÃO SE FINDA

Criada para abrigar os operários que vieram construir a nova capital fora da Avenida do Contorno, a história da Lagoinha é atravessada pelo sentido da festa. Foi na Pedreira Prado Lopes que, em 1936, surgiu a primeira escola de samba de Belo Horizonte, a Unidos da Pedreira. Na década de 1950, a Praça Vaz de Melo estabelecia-se como lócus da boemia belo-horizontina e os Leões da Lagoinha [!] percorriam a Itapecerica.

[!] Tradicional bloco carnavalesco de Belo Horizonte, os Leões da Lagoinha começaram a descer a Rua Itapecerica na década de 1950. Segundo relato do folião Sérgio Ferreira Campos –registrado por alunos da faculdade Una (disponível em: http://bit.ly/2fwck6Z) nos primeiros anos, a única mulher a participar da festa era a porta-bandeira, que seguia à frente do bloco que percorreu a Lagoinha até o final da década de 1970. Só alguns anos depois é que as mulheres se juntaram aos brincantes, trajando, por sua vez, vestes associadas ao masculino. Em 1975, o bloco carnavalesco República Independente da Banda Mole foi fundado por ex-integrantes do Leões da Lagoinha.

“Nasci e fui criada na Praça Vaz de Melo. Meu pai era italiano, tinha o bar e, naquela época, a gente convivia com todos. A casa ficava atrás do bar. Era alfaiate, era cabelereira, era artesão, era prostituta – eu servia cerveja e tudo o mais. Minha mãe, no dia de domingo, gostava muito de colocar as cadeiras do lado de fora do bar. Ajuntava com as famílias dos turcos, e a gente ficava horas conversando. No campinho, tinha o racha, as pessoas jogavam bola lá. Tinha circo e, a minha segunda filha, eu ficava amamentando e ouvindo aquelas músicas. Os alto-falantes mandavam músicas de amor”.
Dona Hilda [!]

[!] Depoimento recolhido por Adriana Galuppo como parte do projeto BARITINA e enviado à Revista Marimbondo em resposta ao chamamento público realizado pela publicação em abril de 2016. Os registros afetivos em fotos e textos foram produzidos pelo desejo de guardar e compartilhar um pouco do bairro que marcou sua infância e a vida de sua família desde que seus avós vieram da Itália para o Brasil na segunda década do século XX. O trabalho de Galuppo vem sendo desenvolvido desde 2013 e, em 2017, será lançado em livro.

Em 1981, a Vaz de Melo foi implodida para dar lugar ao projeto símbolo de um modelo de cidade que sepulta territórios, memórias e espaços de convivência para privilegiar automóveis. A obra do Complexo Viário da Lagoinha também exacerbou o isolamento que o bairro já sofria por estar em uma região originalmente pantanosa, isolada naturalmente pelo Ribeirão Arrudas e entrecortada pela linha do trem. “Um amontoado de viadutos que, para dizer o mínimo, soterrou o ponto nevrálgico da memória boêmia e carnavalesca dessa cidade, a Praça Vaz de Melo, num destes ímpetos rodoviaristas tardios. É dessa década, por exemplo, a remoção de diversas vilas e comunidades do plano urbano (o Pindura Saia, o Pau Comeu, a vila dos Marmiteiros). Talvez não seja em vão que data do final dessa década o início do arrefecimento do carnaval por aqui”, contou o historiador, carnavalesco e puxador de bateria Guto Borges ao projeto Andarilha [!]. O fim da praça foi imortalizado no samba-desabafo Adeus Lagoinha, de Gervásio Horta e Milton Rodrigues Horta, este mais conhecido pelo apelido homônimo ao nome do bairro onde ainda hoje vive Lagoinha.

[!] Plataforma de pesquisa e curadoria dedicada a mapear processos criativos. Pode ser acessada em projetoandarilha.com.

A relação da Lagoinha com a história do samba e do carnaval da cidade e a forma como a Praça, “que nunca dormia”, foi varrida do mapa contribuíram para a criação de um imaginário nostálgico sobre o bairro, permeado pela ideia de que a festa reside apenas em um passado glorioso e enterrado.

“Pedreira querida
Querida Pedreira
Terra de gente boa
Rainha que já não tem coroa
Esta saudosa Pedreira
já foi a nossa querida Mangueira.
Rola minha lágrima sentida
a falta que ela me faz na avenida”

Lágrima Sentida, música composta e interpretada por Mestre Conga, presidente da Escola de Samba Inconfidência Mineira, fundada na década de 1950.

A FESTA CONTINUA

“O pessoal tenta, bota um som, fica legal. Só é ruim quando a polícia aparece para acabar com a festa”, conta uma jovem sobre o baile funk que rola na quadra X da Vila Senhor dos Passos, parte do complexo da Pedreira Prado Lopes. Na Vila, o baile convive com os batuques dos terreiros que, muitas vezes, ganham as ruas.

“Se a rua é espaço do povo, na PPL, é ela que dá o tom das manifestações culturais. Quando realizadas na rua, elas contam com o prestígio da população, que participa de forma democrática, entre homens, mulheres, crianças e idosos. Um calendário fixo de festas — como as juninas, de carnaval e dia das crianças — é organizado durante todo o ano por líderes formais e informais do bairro. Já aos finais de semana, bailes funk e apresentações de samba de roda invadem a noite, fazendo grande sucesso. Durante o dia, ruas como Serra Negra, Escravo Isidoro e Carmo do Rio Claro se veem tomadas de pessoas que dançam livremente ao som que vem dos carros.”
trecho do texto Apenas Diferente, de Valdir Ramalho [!] 

[!] Este texto foi publicado originalmente em 2011, na primeira edição de Marimbondo, que trouxe como tema a Rua.  Jornalista e historiador, Valdir Ramalho mudou-se , quando tinha um ano, para a PPL, onde foi criado.

A Lagoinha é também palco de festas de outros carnavais. Em 2012, o Bloco Tico-Tico Serra Copo escolheu o bairro como destino. Era o quarto ano do bloco itinerante que, ao lado do Peixoto e do Proa, iniciou o recente processo de reexperimentação do carnaval de rua de Belo Horizonte. Em 2016, a Praça do Peixe foi o palco de uma das edições da festa eletrônica MASTERplano e também o local de onde o Bloco Cintura Fina, que carrega no nome uma homenagem à travesti icônica da história boêmia da cidade, saiu pela primeira vez.

Araxá, Varginha, Ubá –  o Tico-Tico seguia pela Floresta e encontrou, no caminho espontâneo que traçava, trilhas por sobre os túneis da Cristiano Machado. Pelo percurso, mangueiradas aliviavam o calor e garantiam à vizinhança outras possibilidades de participar da festa. “Ei, Chapolin, joga água em mim!” [!], era a brincadeira que começava a surgir, invocando, a cada refrescada, a personagem de outro bloco, o da Praia, surgido em 2010, a partir da movimentação da Praia da Estação. A chegada ao bairro, cuja história se mistura com a do próprio carnaval e do samba da cidade, foi justamente atravessando os viadutos que destruíram a Praça da boemia belo-horizontina.

[!] A movimentação da Praia da Estação surge em 2010 como reação ao decreto do então prefeito Márcio Lacerda, que proibia eventos de qualquer natureza na Praça da Estação, centro da cidade. No sábado de carnaval, o bloco se concentra na praia e caminha até a Prefeitura onde, do alto de um caminhão pipa e vestida de Chapolin Colorado, a atriz e ativista Denise Lopes Leal comanda a mangueira que lavará o prédio público e refrescará os banhistas.

Assim como os caminhos que o bloco percorreu naquele carnaval de 2012, o encontro do cortejo do Tico-Tico com o samba de Gervásio e Lagoinha também se daria por acaso. Na altura do número 423 da Rua Itapecerica, as foliãs e os foliões descobriram o conjunto Nossa Senhora da Piedade, e nele a recepção de senhores e senhoras que saíam nos portões com as marchinhas nas pontas das línguas e dos dedos. Um senhor de timbre potente pediu passagem para a bateria que se silenciou diante dos versos: “adeus Lagoinha, adeus, estão levando o que resta de mim, dizem que é coisa do progresso, um minuto eu peço para ver seu fim.”O samba foi incorporado ao repertório do bloco, que seguiu seu percurso.

 

Adeus, Lagoinha, adeus
Estão levando o que resta de mim
Dizem que é força do progresso
Um minuto eu peço
Para ver seu fim

Praça Vaz de Melo da folia
Da gostosa boemia
E de muito valentão
Vou lembrar Joel compositor
E os amigos lá da praça
Lembrarei com emoção
Coisas da matéria eu não ligo
Mas preciso de um abrigo
Para o meu coração

Adeus Lagoinha, música composta por Gervásio Horta e Milton Rodrigues Horta (Lagoinha)

É pelas ruas também que milhares de pessoas seguem a imagem de Nossa Senhora da Conceição, na festa promovida no dia 8 de dezembro pelo Santuário Arquidiocesano Nossa Senhora da Conceição. Pelo sincretismo, neste mesmo dia, os atabaques tocam para Oxum. Os sons das celebrações sagradas misturam-se às alegrias profanas. E ainda que os poderes instituídos em Belo Horizonte insistam na lógica da negação da festa, por vezes utilizando a força repressiva e criminalizando, sobretudo, as festividades da juventude negra, pontos, hinos, sambas, funks, a miscelânea anuncia em alto e bom som que é feriado na cidade.