Revista Marimbondo

Territórios em movimento

“’A revolução dança’. A descoberta da frase veio depois da experiência e foi um bem-dizer, bem-achado, para transmiti-la. Tenho pouca vontade de dançar nos espaços convencionais, meu corpo fica mais preso, mais controlado, não faz sentido. Adoro dançar! Sempre dancei muito em casa e nas ocupações, incluindo o Luiz Estrela, danço como em casa, mas melhor, pois posso compartilhar a experiência de corpo em movimento com muitas pessoas. Nos espaços convencionais, a poesia do corpo é possível ainda, mas, nas ocupações, este é o convite para dançar. Tem uma verdade com a música, o espaço e o corpo que vai ao encontro com o movimento e com o que acreditamos na vida. É poesia, é política e vontade de viver. Resistência à gentrificação dos corpos capitalizados”.

O depoimento é de Roberta von Randow, que se apresenta como “mulher, psicanalista, ativista, participante do Espaço Comum Luiz Estrela [!] e mãe”. Sua opinião é corroborada pela produtora cultural, Clarisse Marinho: “nas ocupações, não é só a diversão em si, mas um compartilhamento de vida, de luta e, claro, de diversão e amor. Me sinto segura assim”. As ocupações as quais elas se referem são tanto as comunidades ocupadas pela luta por moradia quanto ocupações de espaços públicos promovidas por outros movimentos sociais e grupos culturais.

[!] Espaço comum de criação e compartilhamento artístico, político e cultural, aberto e autogerido, localizado no bairro Santa Efigênia.

Nos últimos anos em Belo Horizonte, os eventos promovidos nesses locais e uma série de outras festas, shows, projetos e ações político-culturais, ou mesmo essencialmente artísticas, multiplicam-se pela cidade, configurando uma cartografia de novos territórios temporários ou permanentes, conformados especialmente a partir da música. Ainda que não se trate de uma novidade na história da cidade, as possibilidades vêm sendo ampliadas pela convergência de uma série de fatores, tais como as novas ferramentas tecnológicas e de informação, a busca por alternativas de circulação da produção musical autoral, as reações às políticas higienistas e gentrificadoras do poder público municipal e o desejo de experimentar novos caminhos estéticos.

OCUPAR É PRECISO
Era outubro de 2011, quando Graveola e o Lixo Polifônico abria caminhos com um show que reuniu 3 mil pessoas na ocupação Dandara, na região da Pampulha, então ameaçada de despejo. “Não era apenas o show, mas tudo o que existiu em torno dele. O dia inteiro foi importante, andar por lá, entregar as doações, ver os helicópteros sobrevoando. Aquele momento consolidou um processo que vivíamos com o Fora Lacerda [!]. Hoje, não ficamos surpresos quando a proposta é um show em uma ocupação”, conta o ator Gustavo Bones.

[!] Movimento contrário ao então prefeito de Belo Horizonte, Márcio Lacerda, surgido em 2010.

Quase três anos depois, a ocupação Esperança, localizada na divisa entre Belo Horizonte e Santa Luzia, recebia a festa-protesto A Ocupação, que integrava as ações do movimento #ResisteIzidora [!]. “Quando nos apresentamos lá, foi como oferecer o que tínhamos, ou seja, nosso show e nossa alegria. Como se disséssemos: ‘Tamo junto!’”, conta Efe Godoy, da Absinto Muito, que participou da programação que reunia Duelo de MCs, Hot Apocalypse, Comum, Afromestiço e DJ Corisco Dub.

[!] Movimento de apoio às famílias e mobilização contra as ameaças de despejo das comunidades da região da Izidora, vetor norte de Belo Horizonte, antes, Resiste Isidoro.

A festa-protesto – que também já foi realizada em Santa Tereza, no Barreiro e na ocupação Guarani Kaiowá, em Contagem – teve sua primeira edição no dia 7 de julho de 2013, no encerramento da ocupação da Câmara Municipal de Belo Horizonte, realizada no contexto das chamadas Jornadas de Junho. Uma programação diversa e extensa, que começou às 14h e seguiu noite adentro, tomou toda a Aarão Reis, da Praça da Estação ao Viaduto Santa Tereza, e incluiu apresentações de bandas como Pequena Morte e Psicotrópicos, dos blocos Pena de Pavão de Krishna e Chama o Síndico, edições especiais do Roodboss Soundsystem [!] e do Duelo de MCs e muitos DJs, como Yuga, Naroca e Palomita. “Ter tocado n’A Ocupação teve um papel de celebrar aquele momento, que todo mundo tava sentindo que era um momento meio histórico. Tinha uma sensação de dever, de sentir que a gente (a banda) tava contribuindo”, conta Lucas Freitas, da Iconili.

[!] Dois anos antes da primeira Praia da Estação, o Roodboss Soundsystem já ocupava praças da cidade, trazendo para Beagá a cultura sound system surgida na Jamaica nos anos 50. Um potente sistema de som reverbera a seleção de ritmos como ska, rocksteady e early reggae.

“A Ocupação e outros eventos como esse foram os primeiros palcos da nossa banda e era sempre um momento muito lindo. É exatamente o que precisa uma banda autoral nova; é realmente difícil uma banda ‘vingar’ sem nunca tocar cover, e pra nós foi essencial ter essa oportunidade”, acredita André de Freiras, da Dom Pepo. A oportunidade para circular rendeu à Dom Pepo uma agenda cheia, com média de cinco shows por mês com cachê pago e público “de todos os tipos” cada vez maior.

SOM DE PRETO BICHA
A relação entre festa e protesto, na história recente da cidade, remonta à experiência de coletivos da década de 2000, que empreenderam ações como a Mansão Libertina e o Carnaval Revolução.

“A cultura libertária do faça você mesmo, o protesto lúdico e criativo, a cultura da horizontalidade, o uso intenso das novas tecnologias da informação e comunicação para organização, mobilização etc., a cultura da cooperação, da subversão, da ação direta, a prática de conformação de redes, a divulgação e promoção da cultura livre e não proprietária — expressa pelos temas do software livre, rádio livre, freeganismo, etc. — a autonomia e negação das hierarquias, eram as marcas das ações, iniciativas e agenciamentos que abriram janelas para a criação de formas de sociabilidade e contestação do presente e do futuro. E ainda: o Carnaval Revolução sinalizava para a ocupação do espaço público através da mescla entre protesto e festa”,

explica Igor Thiago Oliveira na dissertação de mestrado Uma “Praia” nas Alterosas, uma “antena parabólica” ativista: configurações contemporâneas da contestação social de jovens em Belo Horizonte, defendida em 2012.

Na esteira dessa herança, blocos de carnaval de rua que começam a surgir a partir de 2009 e, sobretudo, a manifestação Praia da Estação, cuja primeira edição data de 2010, fizeram emergir em Belo Horizonte uma rede de solidariedade que se configura em torno de múltiplas pautas locais e globais marcadas por um discurso anti-hegemônico, de reivindicação do espaço público e de ampliação de direitos. Às marcas progressistas dos movimentos e ações anteriores, acrescentam-se as práticas da permacultura, o cicloativismo e o apoio à luta por moradia.

Nesses contextos, as ações artísticas, tendo a música como carro-chefe, são importantes para o engajamento, a visibilidade e a veiculação de mensagens. Para além das causas, no entanto, universos distintos são aproximados, fronteiras simbólicas são reconfiguradas, a cidade é vivenciada de outras e novas formas, criam-se espaços de compartilhamento de afetos, encontros espontâneos possibilitam o surgimento de novos projetos e possibilidades musicais são experimentadas. “A partir do momento em que um bloco de carnaval de rua, como o Filhos de Tcha Tcha, se desloca da região central para uma área afastada do grande centro urbano, um encontro muito significativo acontece entre os foliões e a comunidade da região. Vivemos em uma capital, e isso também acontece em outras cidades do Brasil, onde as separações sociais, econômicas, culturais e geográficas são bastante delimitadas. Acho que o bloco tem uma aspiração popular, uma vontade de gerar encontros, quebrar certas barreiras”, explica Patrícia Rezende, integrante da Dead Lover’s Twisted Heart e instrumentista do bloco, que nos carnavais de 2013 e 2014 escolheu sair nas ocupações da Isidoro.

“O público dessas festas me parece mais aberto para as experimentações de um DJ, aberto para coisas diferentes. Eu tenho prazer em colocar as músicas que eu ouço em casa e sei que as pessoas vão dançar. Em alguns lugares, as pessoas só gostam de dançar as músicas que elas ouvem em casa. Coloco som de preto, som de preto bicha, som de preto pobre. Discotecar é também um ato revolucionário”, completa o DJ e ator Alexandre de Sena. Além das festas-protesto e shows em locais como o Teatro Espanca!, Alexandre cita o Estúdio da Carne, no bairro São Lucas, e a Gruta!, no Horto, como exemplos de locais onde “é prazeroso colocar um som”.

TÁ EM CASA
“Reproduziremos o cabaret de mãe baiana (Yany Mabel) com a banda dos meninos lindos Davi Fonseca, Adriano Goyatá, Antonio Beirão & Gustavito e participação de atrizes e atores que performarão e sensualizarão em sintonia com os prazeres libertários e libertinos”. Era dessa forma que, em novembro de 2014, a Gruta! anunciava em sua página no Facebook a perfomance musical Cabaret Escombros da Babilônia, uma reprodução de parte do espetáculo homônimo realizado pelo Espaço Comum Luiz Estrela.

Ao lado de casas inauguradas na década de 90 e ainda na ativa, como A Obra e Matriz, e de locais mais recentes que deixaram saudosistas seus frequentadores, como o extinto Nelson Bordello [!], a Gruta! surgiu em 2011 e integra um restrito grupo de espaços que abrem as portas para a música autoral, como Necup, A Casa, Bar 171, entre outros, e a recentemente inaugurada Autêntica, que recebe exclusivamente projetos autorais. O local é palco constante para apresentações de novas bandas e realização de projetos com linguagens e propostas artísticas menos convencionais. Será com dinheiro da apresentação que fizeram na Gruta!, por exemplo, que o grupo Glórios Tarcísios, formado em 2013 por músicos, circenses e atores, irá gravar suas primeiras demos.

[!] Desde dezembro de 2014, o espaço passou a abrigar a casa de shows BAIXO Centro Cultural.

A programação e o ambiente vêm atraindo um público cada vez mais fiel. “É onde me sinto à vontade pra dançar, por causa das pessoas, da música. É um lugar seguro, onde me sinto seguro”, conta o designer Filipe Costa. Ele e o namorado, o também designer Mateus Sá, buscam na memória, sem sucesso, um lugar em Belo Horizonte onde se sintam tão bem.

Foi na festa Tá na Gruta!, tá em casa, onde começou a se desenvolver a parceria entre a Dom Pepo e Luiz Gabriel, produtor do primeiro EP da banda, lançado em dezembro de 2014. Era novembro de 2013 e a casa de shows recebia apresentação que unia o rock tropicalizado da Dom Pepo com o rap d’Os Bocaiúva, banda que não está mais na ativa. Luiz produziu EP da Dom Pepo, que se apresentou com a anfitriã Iconili na festa Catapulta!, que também já abrigou apresentação de Tião Duá, banda da qual participa Luiz, que também faz parte do Graveola.

JUNTO E MISTURADO
Para Lucas Freitas, no carnaval os encontros são potencializados. “O carnaval é que é o grande encontro de todo mundo. No carnaval que eu conheci praticamente todos os músicos das outras bandas”, conta ele, que participa do Bloco da Alcova e “chega para tocar” em vários outros. “Por mais que não tenha compromisso, existe o compromisso de fazer a festa acontecer”, diz, calculando que chega a ficar seis horas por dia tocando sem parar, “de boa”.

O carnaval também é palco do encontro entre músicos profissionais e amadores, que dividem não apenas o compromisso com a festa, mas também o espaço nas baterias. “Eu toco no carnaval pela possibilidade da brincadeira. A possibilidade de experimentar a cidade de um outro lugar que não o do folião e realizar um pouco a fantasia de músico. Tem bloco que tem ensaio aberto e de fato tem uma máxima do ‘pode chegar com o seu instrumento, que algo vai sair daí’. Gosto desses”, conta o psicólogo Rafael Paiva, que se converte em tamborinista nos dias de folia. Em 2015, Belo Horizonte reuniu cerca de 254 blocos oficiais e não oficiais durante o período do carnaval, segundo dados do Mapa da Folia.

CIRCULAR É POSSÍVEL
“Temos que parar de buscar na cidade locais para a nossa música e passar a construí-los!”, diz Alexandre, para quem a construção desses espaços na cidade ainda precisa ser mais arrojada e com mais canais de diálogo com o poder público.

O espaço momentâneo, criado pelo coletivo de música eletrônica COSMOLEVE – que realiza muitas de suas apresentações via transmissão online –, foi um pequeno cômodo que fica sobre o escritório do pai de um dos integrantes, localizado no Sion, na região sul da capital. Era abril de 2014 quando cerca de 120 pessoas se reuniram ali. “Foi uma festa organizada num espaço pequeno, completamente por nossa conta, e foi um dos públicos mais concentrados e interessados que me assistiu até hoje. A principal base de um artista independente aqui em BH hoje são os eventos auto-organizados”, revela João Carvalho, um dos integrantes do coletivo e idealizador do projeto Sentidor.

Já o coletivo goma, que se define como uma causa política e artística, tem como espaço dileto o Ystilingue, no Edifício Maletta, centro da cidade. O grupo, que realiza saraus, shows e apresentações de DJs, organiza suas intervenções por meio de uma planilha online compartilhada onde são disponibilizados os equipamentos de quem quer contribuir. “É a potência que a solidariedade proporciona, gerando lugares e movimentos que não precisam obedecer a uma ordem estabelecida”, conclui um dos integrantes, Marcos Assis.