Revista Marimbondo

Um convite

“Carnaval em BH, destino: rodoviária e aeroporto”. O comentário infame sobre o costume dos belohorizontinos de deixarem a cidade no feriado carnavalesco, antes de ser o retrato de uma apatia histórica nesta época do ano, é revelador de uma falta de memória. Sejam em entrudos, bailes em clubes, desfile de escolas de samba ou em blocos espalhados por bairros da cidade, Belo Horizonte tradicionalmente vivencia esta festa foliã. Mas, especialmente na última década, ruas quase vazias e a forte presença de belo-horizontinos em cidades do interior e em capitais como Rio de Janeiro e Recife contribuíram para que esse hiato marcasse — erroneamente — a cara do carnaval em Beagá.

Esse sentimento de esvaziamento, sentido por muitos moradores, sensibilizou um grupo de pessoas que, em 2009, decidiu se reunir para criar novos blocos carnavalescos, elegendo a rua como espaço de excelência.

“Foi uma política de entender esse corte na produção, entender este cenário devastado. A cidade abriu mão do significado da experiência foliona de rua para os carnavais comerciais no interior, e a gente acabou criando a falsa ideia de que Beagá não tem carnaval. Isso é para mim um reflexo do meio político, dessa obsessão de ‘cidade administrativa, cidade ideal’, da qual o carnaval também foi  vítima. Eu acho que a ausência da memória coletiva é um reflexo disso”,

afirma o historiador, músico e um dos criadores do bloco Mamá na Vaca [!], Guto Borges.

[!] Desde 2010, o Mamá na Vaca desce as ruas do bairro Santo Antônio no sábado de pré-carnaval.

O surgimento desses novos blocos se deu de forma orgânica e natural, fruto da circunstância de encontros entre amigos e conhecidos, fugindo à lógica de autoria de um grupo específico e homogêneo como de músicos independentes, de produtores culturais ou de artistas. “Foi semelhante ao processo de formação de um coletivo ou mesmo como os processos da rua, dos acontecimentos públicos, sem uma direção definida. Uma consequência do que é o próprio carnaval, que tem a graça das coisas e ideias que vão se somando”, explica Guto.

Esse parece ser também o entendimento dos jornalistas Elisa Marques e Nian Pissolati que, em 2009, criaram o Bloco do Peixoto.

“Os blocos surgiram coincidentemente na mesma época, feitos por pessoas que pensam muito a questão da intervenção urbana, da cidade. Acho que a atitude reflexiva começou a ser cada vez maior também ao longo desses três anos, talvez pelo momento que estamos vivendo na cidade. A festa é também uma forma de embate com a rotina e com certa ordem que, de alguma forma, temos questionado: essa forma institucional de gerir uma cidade com a qual a gente não concorda”,

diz Nian. Desde 2008 a dupla vem desenvolvendo projetos artísticos ligados à ocupação da cidade. O Peixoto, que sai às ruas do bairro Santa Efigênia na terça-feira de carnaval, com direito a bateria, estandarte, marchinhas, gente fantasiada e muita serpentina, nasceu dessa vontade de estabelecer um diálogo com a paisagem urbana, também em um “formato” mais festivo.

“Claro que, sendo um bloco de carnaval, o Peixoto tem um lado que é totalmente espontâneo, que é independente do nosso trabalho artístico. Mas uma coisa que perpassa todo esse trabalho de intervenção urbana é um apelo, um convite para que as pessoas vejam o espaço urbano como um lugar de convívio e de permanência”,

completa Elisa.



Desde sua criação, o bloco só viu crescer o número de foliões que se divertiram no trajeto entre as praças do Colégio Arnaldo e Floriano Peixoto. É o destino final, próximo ao tradicional bar Brasil 41, localizado à Avenida Brasil, que emprestou seu nome ao bloco. A impressão é que o “Seu Peixoto” é um morador antigo do bairro que acordou numa terça-feira chamando os vizinhos para dançar pelas redondezas ao som do tamborim.

No quesito tradição e longevidade, o Peixoto é acompanhado pelo Tico Tico Serra Copo, que sai sempre aos domingos, cada ano de um lugar diferente. Foi na mesma época da criação do Peixoto que outro grupo de amigos formou o bloco, que, como o nome indica, tinha na Serra seu ponto de partida. “Até 2009, nunca tinha escutado falar sobre um carnaval alternativo, diferente daquele feito pela prefeitura”, diz Joseane Jorge, uma das “bambas” do Tico Tico. Em tempo: por decisão da Prefeitura, em 2009, o chamado carnaval oficial foi realocado da Avenida dos Andradas para a Via 240, no Bairro Aarão Reis e, neste ano, a festa retornou ao Centro, ocupando o Boulevard Arrudas. Já a identidade do Tico Tico é não ter um lugar fixo para sair.



Em 2010, os criadores do bloco decidiram que queriam desfilar na antiga Sapucaí da capital e viraram então Tico Tico na Sapucaí, partindo do coreto do Parque Municipal para a Avenida dos Andradas, terminando o percurso na Praça da Estação. Neste ano, o percurso foi da Praça da Estação seguindo pela Rua Guaicurus até a Estação da Lagoinha, no bairro de mesmo nome. Segundo Joseane, “a história do Tico Tico é basicamente essa, de fazer novos percursos pela cidade”.

Na conversa com Joseane, uma coisa fica clara a respeito do bloco: ele é despretensioso no que diz respeito à festa e pretende continuar assim. Talvez esse seja um elemento que perpasse todos os blocos que foram surgindo na cidade desde então. Hoje são vários novos blocos, que saem às ruas de uma semana antes até uma semana depois do feriado e estão espalhados por vários bairros da cidade.

Além de utilizarem o famoso boca a boca pra divulgar a notícia dos dias e lugares de onde irão partir, muitos blocos usam ferramentas digitais. Eles se apropriam de blogs, Facebook, Twitter, Youtube e Sound Clouds, além de sites de compartilhamento de arquivos, como o que hospedou um setlist com tradicionais marchinhas de carnaval, preparado por Guto Borges e disponibilizado gratuitamente na rede desde 16 de fevereiro desse ano.

“Fui percebendo que a galera reconhecia os refrãos, mas tinha pouca intimidade com as outras partes das músicas. Isso é um pouco um reflexo dessa geração que conhece de vaga lembrança o carnaval. E a gente não só recuperou as marchinhas, houve também uma verdadeira explosão de composição. Esse trabalho de recuperação e, ao mesmo tempo, de nova produção foi muito a cara desse carnaval”,

avalia Guto.

Uma festa popular no carnaval, além de ser uma experiência aberta, sentimental, lírica e (por que não?) política, expõe também uma dimensão de renovação dos laços sociais da cidade com os moradores que nela vivem.

Essa experiência de passar o carnaval em Belo Horizonte seduziu o jornalista e morador da capital mineira, Alex Capella. Antigo incentivador do carnaval na cidade, entre 1997 e 98 ele coordenou um projeto de roda de samba que, todas as sextas-feiras, levava ao Lapa Multshow um convidado do Rio de Janeiro para se apresentar com grupos locais. Desde o início dos anos 1990, Alex costumava festejar o feriado carnavalesco na capital carioca, onde dizia encontrar um “autêntico carnaval de rua, dos blocos e marchinhas clássicas”, mas esse ano decidiu participar da festa em Beagá. “Especialmente no ano passado, o carnaval do Rio tornou-se impraticável, com restaurantes cheios e caos na mobilidade urbana. E essa superlotação que a Prefeitura não soube controlar coincidiu com o ressurgimento do carnaval de Beagá. Resolvi apostar depois do sucesso do Trema na Lingüiça”, conta Alex.

Organizado pelo Clube Mackenzie e por moradores do bairro Santo Antônio, o Trema na Lingüiça existe há cinco anos e circula nas proximidades do bairro até a região da Savassi, um mês antes do calendário oficial do carnaval. Alex, que é também diretor de comunicação do clube, conta que em 2011 o bloco chegou a reunir 1.500 foliões.

Seu entusiasmo com o Trema na Lingüiça incentivou a permanência na cidade, garantindo sua participação como um dos instrumentistas da bateria do bloco Alcova Libertina, surgido na cidade em  2010. Mas apesar de celebrar o “ressurgimento” do carnaval em Belo Horizonte e confirmar presença no próximo ano, Alex sugere mudanças. “Gostaria de ver uma definição melhor de repertório, uma estrutura de bateria mais organizada, melhorar a qualidade artística”, diz. Apesar das críticas, ele abre espaço para elogios.

“O carnaval de Beagá mantém um espírito de anarquia organizada, uma bagunça com cara de arrumada, de festa sem compromisso. Se tiver instrumento você leva, se tiver fantasia ou não, participa também. Tem essa liberdade para brincar carnaval, solteiro ou não, acompanhado ou não. E isso é bonito, acho que tem que manter esse espírito”.

Ana Carolina Antunes, jornalista e produtora cultural, foi uma das que este ano também apostou no carnaval da capital mineira. Esteve presente em todos os dias, incluindo o fim de semana anterior e o posterior, em pelo menos um bloco por dia, e se diz empolgada com a iniciativa na cidade. “Estive em 2010 também e vi um crescimento neste ano. Não temos a tradição de Olinda ou Rio de Janeiro, mas está bonito à beça, blocos já com estandartes, começando a firmar uma identidade”, ela conta. Sobre a possibilidade de um retorno do deserto carnavalesco de outrora, ela se diz cética. “Depois desses últimos carnavais, não tem como não se envolver. A festa é na rua, de graça e com marchinha sobre as nossas coisas. Carnavaliza BH!”.

O convite está feito.

 

ALGUNS BLOCOS DO CARNAVAL BH 2011
Bloco da Alcova
Bloco do Aproach
Bloco do Angu
Bloco do Beijo Elétrico
Bloco da Cidade
Bloco Cacete de Agulha
Coletivo do Delírio
Bloco Cuequinhas do Papai
Bloco Filhos de Tcha Tcha
Bloco do Grito
Bloco Mamá na Vaca
Bloco do Manjericão
Bloco de Moreré
Bloco Pão Molhado
Bloco do Peixoto
Bloco Podia Ser Pior
Bloco da Praia da Estação
Bloco da Tetê, a Santa
Bloco do Tico Tico Serra Copo
Bloco Trema da Lingüiça
Bloco Unidas dos Grandes Lábios
Bloco Unidos do Barro Preto
Bloco Unidos do Samba Queixinho
Bloco Vira o Santo
Bloco Vi Uvas no Carnaval”