Salve Maria!
EXPOSIÇÃO VIRTUAL
Repertórios Sagrados
da Irmandade
Os Carolinos


Reflexão
Texto escrito pelo professor e escritor Pedro Kalil. As fotos foram tiradas na exposição Reinado de Chico Calu: repertórios Sagrados da Irmandade Os Carolinos realizada no Museu Inimá de Paula (dezembro de 2017 – janeiro de 2018). Elas são do fotógrafo Patrick Arley, assim como as imagens retratadas (exceto quando assinalado ao contrário na legenda). Alexandre Tavera é quem assina a cenografia.
1.
O que as imagens querem não é o mesmo que a mensagem que elas comunicam ou o efeito que produzem, não é sequer o mesmo que elas dizem querer. Como as pessoas, as imagens podem não saber o que querem, devem ser ajudadas a lembrá-lo através do diálogo com outros. – W. J. T. Mitchell
Muitas vezes diante de imagens nos perguntamos o que elas querem nos dizer ou mesmo nos interrogamos sobre a intençãoda intenção daquele fotógrafo, pintor, escultor. Outras vezes, nos aplicamos a entender uma espécie de “mensagem” que poderia estar cifrada ou não, como se estivéssemos nos comportando como detetives em buscas de signos ou índices de outras coisas. Algumas vezes, justificamos as imagens através daquilo que elas nos fazem sentir, atribuindo a elas uma espécie de sentimento que seria despertado através de nosso olhar, sendo a gama possível bastante ampla: da tristeza à felicidade, da esperança à desolação. De vez em quando, buscamos justificá-las pelos seus aspectos mais puros como a luz, as cores, os contrastes e os ângulos. Enfim, sentimos certa necessidade de compreender racionalmente essas imagens, mesmo quando dizemos simplesmente dos nossos sentimentos, e sempre através de nosso olhar, como quem busca fugir do medo diante da Medusa.
Não que as imagens nos petrifiquem ou que tenhamos que olhar de soslaio ou em um reflexo para que elas não nos ataquem ou, ainda, que tenhamos que nos colocar numa posição de dissintonia para que seja possível uma relação outra diante das imagens. Mitchell destaca duas posições possíveis para a relação com a imagem: o outro e a memória. Nesse sentido, o que ele pretende alocar nas imagens é uma espécie de vida mesma, que podemos dialogar e que é possível ativar uma espécie memorial que faça com que as imagens nos digam aquilo que poderia estar esquecidas até para elas mesmas.
Aqui estão apresentadas as fotografias que Patrick Arley realizou durante a festa-grande da Guarda de Moçambique e Congo Nossa Senhora do Rosário Sagrado Coração de Jesus – Irmandade Os Carolinos. Diante delas, antes de pensar no que representam ou o que querem representar, pois, coloco a questão: como conversar com elas? O que essas imagens querem se lembrar?

Visão panorâmica da exposição

Visão panorâmica da exposição

Reprodução do altar da Irmandade Os Carolinos. A imagem maior é Nossa Senhora do Rosário e, ao seu lado, Sagrado Coração de Jesus e outra Senhora do Rosário (esta, fundadora da Irmandade). No altar ainda encontra-se uma espada, um bastão e duas coroas que pertenciam aos fundadores. O tambor ao chão também é um objeto da fundação da Irmandade. A bandeira representa as duas guardas que compõem Os Carolinos: Congo Sagrado Coração de Jesus e Congo Nossa Senhora do Rosário

A imagem é de Marcílio Luiz Moreira, o Leca, filho de Luiz Carolino. Ela foi tirada em 2012 pelo fotógrafo Netun Lima, durante viagem a Aparecida do Norte.No chão, tambores, bastões, gungas e uma bandeira da Irmandade.
2.
O léxico e as expressões que Júlia Moysés escolhe para o texto que abre a edição da Revista Marimbondo sobre a Irmandade Os Carolinos nos ajuda a conversar: limite; fato e recriação; memória; lacunas; espaços vazios; desenrolar dos descendentes; história e identidades construídas e desconstruídas; múltiplas vozes; relembramentos que se complementam; harmonia e contradição; narrativa polifônica. Não são palavras escolhidas ao acaso e que um olhar atento nos sugere que algo não é, de forma alguma, disruptivo, mas legado, transportado e repassado. Não se trata de uma herança no sentido estrito do termo, mas de viver essa herança não como algo do outro que chegou até a mim, mas como algo que é, também, meu. O movimento nunca parece ser reto, linear; antes, é um movimento que vai e volta, continuamente, que aponta, ao mesmo tempo, para direções múltiplas e por vezes opostas. Nesse sentido, a própria noção do limite é outra: é um limite que é marcado, justamente, quando ele deixa de se circunscrever.
Se os movimentos da Irmandade Os Carolinos nos indicam linhas de temporalidades que se direcionam para vários pontos ao mesmo tempo, nas fotos de Patrick Arley temos não um centramento em um objeto representado, mas um deslocamento que varia entre a moldura e seu excesso, como quem, constantemente, desafia o lugar seguro de uma linha de fuga. As imagens em conjunto apresentam não só o “olhar pela janela” tão próprio da arte ocidental, como argumenta Hans Belting, mas deslocam o olhar para o que não está no centro da imagem e, também, para aquilo que transcende a ela: a cidade como fundo se colocando em contraste aos mastros; os planos distintos da terra, dos Carolinos e o pássaro no céu; o movimento em contrafluxo das crianças em roda e as fitas que enfeitam a festa; e assim por diante. Nesse sentido, podemos dizer que as imagens querem que se construa uma memória que não é particular, própria, neoliberal, mas de um conjunto de pessoas, lugares, movimentos e olhares.

Mastros erguidos da Irmandade Os Carolinos durante a realização da festa-grande da guarda de moçambique

Na imagem em primeiro plano, a capitã Neide se benze no cruzeiro existente no Retiro (Contagem - MG). Em segundo plano, o capitão Nelson recebe um capitão de uma guarda visitante durante a festa-grande da guarda de moçambique.
3.
Se chamo atenção para as imagens fotográficas de Patrick Arley, não é esquecendo dos outros objetos que compõe a exposição: altares, andores, mastros, bandeiras, instrumentos, cruzeiro e plantas que criam uma reprodução do terreiro da Irmandade Os Carolinos. Um conjunto de objetos que criam uma imagem daquilo que é sagrado e que se comunica com o espaço em que se retomam a religiosidade e sua celebração.
Esse conjunto de objetos, de alguma forma, determinam o tipo de movimento explorado acima. No livro Percursos do Sagrado, são as pessoas das Irmandades do Rosário de Belo Horizonte e entorno que constroem as descrições de seus próprios grupos e suas imagens. Assim, o objetivo desse livro “foi de alinhavar, através da poética, do emaranhado de cores, dos depoimentos e narrativas de majestades e capitães, dos dizeres de cozinheiras e dançantes, dos saberes e dos cantares, das lembranças e das lacunas do esquecimento, um mapa afetivo e territorial dos percursos sagrados desenhados pelos gestos rituais e pela memória”. Abaixo, destaco alguns que são sugestivos para o que estamos tentando elaborar.
Sobre a bandeira mastro, nos fala Geraldo Antônio da Silva, da Guarda de Moçambique de Nossa Senhora do Rosário do Bairro Alto dos Pinheiros: “o levantamento de bandeira é a ligação da terra com os céus”. Neide Assis, da Guarda de Moçambique de Nossa Senhora do Rosário e Sagrado Coração de Jesus – Irmandade Os Carolinos, fala sobre os capitães: “sou bisneta de Chico Kalu. Eu comecei desde pequenininha, aí na época nossa guarda tinha o reco-reco. Com sete anos eu fui coroada, eu fui bandeirada, com o tempo eu já saí, fui rainha do povo, devido ao meu avô ter morrido, a minha tia me confirmou como capitã. Capitã e quebra-galho de outras coisas”. A respeito da gunga, Elizângela Aparecida Santana, da Guarda de Moçambique de Nossa Senhora do Rosário do Bairro Alto dos Pinheiros afirma: “Você não bate a gunga de qualquer forma. Ela tem um momento certo, tem que ser em sintonia. O capitão, quando vai começar, ele acabou de se fardar, ele chama a sua ancestralidade batendo a gunga”.
Percebe-se por essas poucas falas que colhemos os movimentos duplicados e múltiplos que se entrelaçam nas narrativas dos congados e dos congadeiros, nas fotografias de Patrick e nos próprios objetos que são colocados à vista na exposição. Ancestralidade, ligação do céu com a terra, e movimento são partes integrantes de toda a imagética que envolve o congado. Chris Marker e Alan Resnais, em filme sobre o Museu do Homem, em Paris, diz sobre os objetos africanos ali expostos: “Um objeto está morto quando o olhar vivo que se colocava sobre ele desapareceu”. Talvez, o que esse conjunto de imagens e objetos-imagens da exposição sobre Os Carolinos, queiram de nós é que eles sejam vistos, já que são vida e retorno, presença e passado e, portanto, futuro.

reprodução do altar para São Benedito, o santo negro cozinheiro (essa imagem é da exposição realizada no Centro Cultural Nordeste de dezembro de 2019 a fevereiro de 2020)

andores usados nos cortejos que encerram as festas-grande da Irmandade Os Carolinos, com os santos de devoção percorrendo as ruas do Bairro Aparecida (essa imagem é da exposição realizada no Centro Cultural Nordeste de dezembro de 2019 a fevereiro de 2020)

Bandeiras usadas nos mastros erguidos durante as festas-grande. A quarta bandeira que aparece é chamada “bandeira de aviso” e é erguida 15 dias antes do início das festividades.

Em primeiro plano, a reprodução de um mastro. Ao fundo, bandeiras usadas nos mastros erguidos durante as festas-grande e a bandeira de mão que acompanha a guarda de moçambique, indo sempre à frente da formação.

Visão do terreiro onde está a sede da Irmandade Os Carolinos, no bairro Aparecida, no dia do ritual de levantamento dos mastros, que antecede a chamada festa-grande e faz parte dos rituais de louvor à Nossa Senhora do Rosário e demais santos de devoção da Irmandade.
4.
Existem duas entradas para a sede da Guarda de Moçambique e Congo Nossa Senhora do Rosário Sagrado Coração de Jesus – Irmandade Os Carolinos: uma pela rua Amiro Rodrigues Campos e outra por meio de uma escada que sai na rua Mariana Barcelos, ambas consideradas “sem saída”. Indo pela rua Amiro Rodrigues Campos, antes de chegar no terreiro central recém-reformado, se contorna um córrego não canalizado. No dia da festa é ali que se fincam os mastros com suas bandeiras. É possível entrar e sair de forma circular, ou, dizendo de outra forma, é possível entrar por um caminho e sair pelo outro e vice-versa, ou, ainda, é possível dar a volta fazendo um movimento circular.
Esse movimento circular que pode ser realizado onde a própria sede está encravada nos remete já ao próprio movimento dos corpos congadeiros quando em festa. O ato de rodar, de ir e vir, não é aleatório e muito menos não predicado. Aqui, estamos diante de um outro tipo de memória a ser despertada, uma memória inscrita no corpo, muito mais do que no papel. É algo que Daiana Taylor vai distinguir: o arquivo e o repertório. Enquanto aquele é o que se tomou como a memória ocidental, tida por estável (museus, livros, monumentos), a outra foi tida como diminuta, já que inconfiável e instável. Esse repertório parece ser a memória primordial dos congadeiros, que passam sua história por meio, principalmente, da oralidade, mas que também vai sendo talhada nos corpos enquanto dançam, cantam, rezam e tocam seus instrumentos, passando de geração a geração.
É assim que Leda Maria Martins vai pensar a respeito de uma outra construção temporal, que não é teleológica ou linear, mas espiralar. A espiral, ao mesmo tempo que aponta o movimento de ida para um centro, indica também esse movimento de saída. Não é uma ilusão de ótica, mas de um movimento que só se faz completo quando é duplo. Se é possível rodar em volta da sede da Irmandade Os Carolinos, nos parece sugestivo o movimento que o próprio congado entrega em sua postura corporal, em suas histórias, em suas performances e imagens. Se o repertório é tido como instável, o movimento de lembrar e esquecer não se dá de forma uniformizada, como em substituição, mas nos indica que “assim como não há uma reminiscência total, absoluta e eterna, o esquecimento também é da ordem da incompletude”.

Iago dança em movimento típico moçambiqueiro, com a gungas no pés e seu bastão de capitão mirim durante a festa-grande da guarda de moçambique.

Guarda de Congo Sagrado Coração de Jesus em formação. Em primeiro plano, capitã Keise com sua espada de capitania.

Capitã Rubia com seu bastão da capitania da Guarda de Moçambique Nossa Senhora do Rosário
5.
“Dar a ver é sempre inquietar o ver, em seu ato, em seu sujeito. Ver é sempre uma operação de sujeito, portanto uma operação fendida, inquieta, agitada, aberta. Todo olho traz consigo sua névoa, além das informações de que poderia num certo momento julgar-se detentor”
Talvez só haja imagem a pensar radicalmente para além do princípio de imitação. – Didi-Huberman.
Quando digo que o congado e suas imagens são passadas de geração a geração, de uma forma não estável a partir de um repertório, não estamos dizendo que a geração subsequente seja uma geração da pura cópia, da mimeses enquanto imitatio. Em um processo que não é da ordem da dialética, mas das linhas plurais, a instabilidade se revela em um processo que é retomada e criação, ou recriação, não de reprodução. Diferente da tradição ocidental católica de reprodução de rituais que são passíveis de uma repetição intermitente, a retomada da ancestralidade congadeira não pode ser encaixada numa simples tradição europeia e por isso é necessário perceber a fenda aberta no olhar que as imagens aqui constroem.
Tanto nos objetos do congado, quanto nas imagens de Patrick Arley, não temos simplesmente um processo de registro e reprodução, está além da reprodutibilidade técnica. Os olhares nas fotografias, por exemplo, direcionam o olhar para a lente ao mesmo tempo em que se desviam, olham de esguelha, como uma outra mirada estrábica, olhando o presente e o passado, o Brasil e a África, os ritos africanos e os santos católicos, a festa e o louvor, a presença e a ausência, a memória e o esquecimento. Nesse sentido, a partir do olhar que estão presentes nas fotos e nos objetos da exposição, é possível subsumir a mirada que jogamos para essas imagens e objetos: não é um olhar da estabilidade da imitação, mas do que desperta um outro tipo de pensar, um pensar de certa forma radical, que aponta para a forte presença da névoa que não se evapora de nossos olhares. E é para essa fitada enevoada que essas imagens respondem e querem que aprendamos a piscar, limpar, coçar, os olhos antes de ser possível de dar a olhar aquilo que, não necessariamente, conseguíamos ver.

David carrega uma das caixas da guarda de moçambique dentro da capelinha da Irmandade Os Carolinos
