Revista Marimbondo

Se as minas resolverem se juntar

Quando emergiu em meados dos anos 1970 especialmente no bairro do Bronx, em Nova York — e em estreita relação com a cultura negra norte-americana —, o movimento hip hop [!] foi reconhecido por sua voz masculina. Quando chegou ao Brasil [!], dez anos mais tarde, essa foi a escrita que ganhou os holofotes por cerca de uma década, até que figuras como a paulistana Dina Di, do grupo Visão de Rua, rompessem — muitas vezes no grito — com o manto de invisibilidade das mulheres no rap brasileiro. “O microfone na mão, munição vai ter de sobra. Se as minas resolverem se juntar, partir pra cima, muito mano vai se desesperar”, dizia ela, em “Mente Engatilhada”, faixa do segundo álbum do grupo, Ruas de Sangue, lançado em 2001 [o primeiro, Herança do Vício, chegou ao público em 1998]. Mesmo que o acesso delas ao front ainda sofra interdições, ao legado de Dina e de outras veteranas se somam experiências locais que, há tempos, produzem reverberações e afetos em rappers e MCs mineiras, iniciantes ou não — bem como em DJs, b-girls e grafitteiras —, nos palcos e fora deles.

[!] O Hip Hop é composto por quatro elementos: o DJ e o MC, que desenvolvem o rap, abreviaçao de rhythm and poetry (ritmo e poesia); o break, uma forma de dança; e o graffiti que, segundo relatos, teria sido “inspirado em um jovem — mensageiro de profissão — que tinha como costume escrever suas tags (assinaturas) em diferentes pontos da cidade de Nova York, principalmente dentro e fora dos trens e nas estações do metrô. Tal personagem permaneceu anônimo até a publicação, no jornal The New York Times, de uma entrevista em que ele explicou que as inscrições Taki 183 eram o nome e o número da rua onde residia. O resultado imediato da matéria foi o surgimento de várias legiões de takis”, segundo conta Rômulo Silva, na publicação “Muito além do som: a produção cultural na trajetória de um grupo de rap”.

[!] Inicialmente foi a dança o primeiro elemento a ter destaque, com dançarinos se encontrando em praças para trocar informações e passos. Mais tarde, após a junção dos demais elementos, é que se consolida também como um posicionamento político, estético e social.

“Me atrevo a dizer que o Barreiro é um grande responsável pelo boom do hip hop na década de 90”, comenta a artista Zaika dos Santos, lembrando que até hoje a região é palco importante de batalhas semanais de freestyle, muitas vezes feitas na marra, só com MC, beatbox e plateia, ou em eventos como o Bronx73. A festa, inclusive, fez em setembro de 2014, no Berimbau Circo Bar, em Contagem, uma edição chamada Especial Ladies, com Zaika, Tamara Franklin e Negra Lud formando o line up.

 

PRELÚDIO
Além da Região do Barreiro, bairros como a Serra, na região Centro-Sul, o Alto Vera Cruz, na Leste, e a Cabana do Pai Tomás, na Oeste, tiveram papel importante, especialmente nessa época, ao reunir “encontros de hip hop”, uma oportunidade para divulgar grupos de rap locais e nacionais e também atrair novas adeptas e adeptos. A primeira apresentação que o grupo paulista Racionais MC’s fez na capital mineira — em 1995, na Praça da Estação — é, aliás, tida como um dos marcos dessa conquista de (outros) territórios para o rap. “Era uma época de muito menos opções de lugares para se ir que hoje. Sendo evento público então, era um risco que se corria, ainda mais sendo menina. Mas, porra, era Racionais e eu fui”, conta Fernanda Avezedo que, três anos mais tarde, se tornaria produtora na Motor Music, mistura de loja de CDs, distribuidora de discos, selo musical e produtora de shows de Belo Horizonte que durou até 2004 e teve importância fundamental para a cena independente nacional.

Junto com eventos de rua, o fortalecimento das rádios comunitárias e o surgimento de mais espaços alternativos contribuíram para alargar as possibilidades de produzir e experenciar a cultura hip hop na cidade. Algumas casas noturnas e/ou festas foram pioneiras como o Estrela Night Club, Dançarte, Casarão e Calabouço, sempre abrigando noites voltadas para o rap. Com os grupos tornando-se cada vez mais populares e com maior alcance de público, foram surgindo também novas formas de organização do movimento hip hop, inclusive com ainda mais autonomia na organização de eventos [!].

[!] Hip Hop in Concert, Palco Hip Hop, Hip Hop Aciona, Cidade Hip Hop são alguns deles e chegavam a reunir cerca de 10 grupos de rap cada um.

Produto tosco, sempre com pouco / ou quase nenhum real no bolso, junto com os loko / Houve um boato que Darçarte com uma Estrela dentro do Casarão e o Calabouço

“RapStreetSamba” — MC Kroif, com participação de Thales Dusares

É na esteira dessa história que, em 2000, articulou-se em Belo Horizonte o Coletivo Hip Hop Chama [!], formado por jovens da Grande BH, com o intuito de ser um espaço de reflexão, formação e ação política voltado especialmente à cultura hip hop. Aos quatro elementos, foi acrescido um quinto: “aliar o fazer com o pensamento crítico, nas quebradas e na cidade, como um todo. Achávamos que era importante manter um espaço permanente de ativismo”, conta Áurea Carolina de Freitas, uma das integrantes e hoje subsecretária de Políticas para as Mulheres de Minas Gerais.

[!] O coletivo assim se definia: “O Coletivo Hip Hop Chama surgiu em 2000, entre jovens grafiteiros e membros de grupos de rap e break da Região Metropolitana de Belo Horizonte, com o objetivo de promover encontros de discussão e construção de propostas relacionadas à realidade da juventude da periferia. O grupo se reúne periodicamente e é aberto à participação das pessoas interessadas.”

O coletivo — que existia como espaço de convocação para “trocar ideia” — foi sendo construído por “pessoas e aliados que pensassem a cultura da periferia, mas sempre discutindo nossa participação política para além dessa atuação cultural”, lembra Áurea. A partir de 2005, o “Hip Hop Chama” passou a aprofundar debates sobre a cidade e, também, sobre pautas feministas. “Houve um curso do Observatório Cultural, promovido pelo Centro Cultural UFMG — sob coordenação da Lena [Professora Regina Helena Alves] —, onde a gente tinha encontros semanais para discutir ocupação dos espaços públicos, cultura da periferia, questões de gênero, diversidade cultural… A partir disso, fomos criando várias ações, até porque a necessidade de ocupação era algo óbvio para todos nós; a gente se reconhecia, hip hop é rua”, diz ela. O convite se pretendia amplo. “Queríamos mobilizar a quebrada, envolver quem nunca participava do debate. Dos seminários abertos ao público, íamos a escolas, oficinas nas quebradas, intervenções comunitárias, fazíamos sessões de rap com cinema”, diz.

Em 2006, o coletivo construiu, com apoio financeiro do programa GRAL — Gênero, Reprodução, Ação e Lideranças, da Fundação Carlos Chagas, o debate “Machismo não é estilo de vida”. Realizado no dia 12 de junho, no Teatro Francisco Nunes e com entrada gratuita, ele pretendia “problematizar os preconceitos e as discriminações que perpassam as relações entre mulheres e homens, com foco na cultura Hip Hop”. À época, Vanessa Beco, integrante do grupo de rap Negras Ativas, do próprio Coletivo Hip Hop Chama e uma das debatedoras pontuou: “internamente, temos conseguido avançar bastante no nosso entendimento sobre as três temáticas centrais do projeto – gênero, sexualidade e redução de danos. O pessoal do Coletivo, hoje, tem procurado cada vez mais se posicionar contra o machismo e a homofobia, por exemplo. Ampliando nossas ações para a cidade, esperamos aprofundar nas reflexões e provocar mudanças de postura”.

“Essas questões já pulsavam no coletivo, até porque tinha muitas integrantes mulheres. Daí a gente pautava os caras, mas esses debates trouxeram uma formação mais consistente”, avalia Áurea. Rômulo Silva, à época integrante do coletivo, concorda: “O hip hop, algo que era parte das nossas vidas, era também machista, como a gente. Aos poucos, nas nossas discussões, a gente foi se percebendo também. Daí o desejo de colocar em pauta”.

Em simbiose com os debates que eram colocados em curso, projetos e grupos como o Atitude de Mulher e o Dejavuh iam abrindo caminho para que suas vozes ecoassem ainda mais. O Atitude de Mulher, aliás, foi um dos primeiros projetos exclusivos de mulheres no Hip Hop de Belo Horizonte. “Foi um espetáculo que preparamos para o FAN — Festival de Arte Negra de 2006, se não me engano, com rap, grafite, break, DJ, dança afro e percussão. Éramos umas treze mulheres no palco! Com a Polly Honorato, Lauana Chantal, Vanessa Beco… Esse projeto também se apresentou no ‘Hip Hop in Concert’, mas eu já não estava mais no grupo”, lembra Áurea.

Hip Hop In Concert [!] — que teve três edições anuais até 2008 — elegeu como vencedor, em sua estreia em 2006, o grupo Ideologia Feminina, formado por Zaika dos Santos, Aline Cecília e Maria Alice (compositoras e vocalistas) e Edivânio José (DJ). “Aliás, o Hip Hop in Concert foi uma bendita oportunidade para tocar com aquela estrutura, ter acesso a política pública pro hip hop, ainda que precária. Era cenário novo, som de qualidade, evento gratuito. Houve seleção para participar, fizemos imagem de divulgação, release, ensaio, tudo sem recurso. A gente vibrava quando saía no jornal. A gente tava ali ocupando espaços públicos que eram inacessíveis. E começando a pautar esses usos”, lembra Áurea.

[!] “O projeto nasceu dos planos de gestão, que concebia uma ação voltada para o jovem (mas incluindo outros trânsitos geracionais), especificamente na área da música, concebendo perspectivas de uma arte mais autoral, mais comprometida com a existência, as afirmativades culturais e a atitude diante do mundo. O que estava em consonância com as diretrizes de governo, em termos de uma política para a juventude. Para isso, muitas consultas, análises e conversas.”, escreveu Luiz Carlos Garrocho, então diretor dos Teatros Marília e Francisco Nunes (2005 a 2008), da Fundação Municipal de Cultura. Sua última edição, em 2008, teve como integrante de Comissão Consultiva do projeto o próprio “Coletivo Hip Hop Chama” e Edson de Deus (primeiro produtor dos Racionais MCs), além da produção de Renegado e Rômulo Silva. Foi garantido por emenda parlamentar na Câmara dos Vereadores do vereador Arnaldo Godoy.

Outro grupo de importante reverberação é o Negras Ativas — uma organização de negras, jovens e moradoras da periferia que integra a Frente Nacional de Mulheres no Hip Hop —, surgido em 2003. Em 2012, ele lançou o projeto Hip Hop das Minas com o objetivo de “fortalecer e incentivar a participação feminina na cultura hip hop em Belo Horizonte e Região Metropolitana”. O projeto promoveu uma série de encontros e formações dando origem, em 2013, ao documentário A arte de ser…, sobre as mulheres no hip hop da cidade.

Quer ontem, hoje ou amanhã (sim!), elas continuam em luta — misturando festa e resistência —, seja por meio da performance no palco ou em territórios mais prosaicos e cotidianos de disputa por voz, representatividade, visibilidade e reconhecimento. Uma construção em processo. “A gente contribuiu para formação de uma geração de ativistas de hip hop com preocupação de atuar e discutir politicamente. Conseguimos construir espaços autônomos de reflexão, de pensamento de estratégias de atuação que, hoje, nos levam a um caminho de um fazer artístico que busca fazer diferença no mundo. Era o tal quinto elemento do hip hop que dizia o Afrika Bambaataa; o conhecimento. De lá para cá, tem uma galera mesmo, um monte de mulheres que passou pelo Hip Hop Chama que está inserida em algum trampo artístico ou anda fazendo algo nas quebradas. Mas que fique claro, nada nos foi dado, tudo foi conquistado”, lembra Áurea.

Trecho do convite para a campanha “Hip-Hop Chama na Ideia” (2005)*
A proposta surgiu de uma preocupação: percebemos que determinadas situações de preconceito, opressão e violência que acontecem na sociedade são, muitas vezes reproduzidas dentro do hip hop, principalmente contra mulheres, homossexuais e usuários (as) de drogas. Ao mesmo tempo, acreditamos que as formas convencionais de abordagem desses temas (tipo “falatório”) não conseguem conquistar a juventude para o debate e, muito menos, convencê-la a assumir posturas mais respeitosas, solidárias e comprometidas. Diante disso, decidimos promover espaços de diálogo e reflexão para que possamos, individual e coletivamente, (re)pensar e (re)criar nossas visões e atitudes com relação às questões de gênero, sexualidade e redução de danos.