Revista Marimbondo

Do quarto à rua: uma leitura do heavy metal brasileiro

Como outros movimentos, o heavy metal no Brasil representa um contraponto a uma visão negativa que se tem sobre a década de 1980. Após a euforia da juventude das décadas de 50, 60 e 70, os anos 80 assistiram a um esvaziamento da rebeldia jovem, que se institucionalizou e foi assimilada pela estrutura de consumo. No Brasil em processo de redemocratização, a luta política perdeu peso e, aos olhos do grande público, os jovens acomodaram-se em assumir seu papel de consumidores, o que se refletiu na produção cultural do período, vista como fútil e pobre do ponto de vista da criatividade. Diante disso, os anos 80 ganharam o epíteto de “década perdida”, e quem foi jovem naquele período foi enquadrado sob o rótulo de “geração Coca-Cola”, em uma imagem que traduz vazio ideológico, pobreza intelectual e acomodação política. Apesar disso, nasciam nas grandes cidades manifestações que iam na contramão desse contexto. Novas tribos urbanas, como os punks e os metaleiros, desbravavam novos territórios de atuação social e cultural. Fora dos grandes canais de mídia, desenvolveram uma produção independente, através da qual vozes desarmônicas ao grande sistema continuaram a soar. Nesse sentido, o heavy metal brasileiro foi, na década de 1980, um nicho de sobrevivência e ressignificação da rebeldia jovem, contribuindo para a abertura de espaços de ação cultural ainda operacionais no início do século XXI.

Historicamente, a juventude se constituiu como uma categoria de tensão entre a rebeldia e a assimilação pelo próprio sistema diante do qual ela representava um questionamento. É a partir do início do século XX que o jovem começa a ser reconhecido como agente social. Até então, não era consagrada a concepção de uma fase intermediária entre a infância e a vida adulta. Isso começou a mudar com a difusão da ideia de um progresso vigoroso e ágil, que foi associado ao nascimento de ideologias políticas como o fascismo, e logo incorporado a um militarismo. Assim, surgiam na Europa agremiações juvenis formadoras de adeptos de diversas correntes político-militares que estiveram em voga na primeira metade do século XX. O fato, porém, de que esse período foi marcado pela falência de diversas ideologias que sustentaram seus projetos modernizadores abriu espaço para um desvirtuamento da juventude. Guerras, perseguições, crises sucessivas de emprego, de produção, de fronteiras se tornaram o universo de jovens cada vez mais sem perspectivas e críticos de seu mundo. Essa insatisfação se concretizou de várias formas ao longo do século XX, normalmente através de movimentos sociais, aos quais o nascente rock´n´roll forneceu hinos. O grande alcance desse movimento, por sua vez, conferiu à rebeldia jovem uma possibilidade mercadológica, e os próprios signos de rebeldia foram assimilados pela estrutura produtiva, o que devolveu o jovem ao seu papel na hierarquia social, em um paradoxo entre a ruptura e a acomodação.

No Brasil da década de 1980, o heavy metal se constituiu como uma ferramenta para se tentar escapar desse processo de coerção. Ele foi um espaço de exercício da rebeldia, o que se manifestou em diversos aspectos de sua execução. Para existir nesses termos, o heavy metal abdicou de qualquer pretensão aos espaços tradicionais de circulação cultural. Para se apresentarem, as bandas buscavam espaços novos, desconhecidos, decadentes ou improvisados. As notícias se difundiam graças à ação de ferramentas rudimentares, como conversas em esquinas, recados telefônicos ou fotocópias precárias de cartazes. A princípio, a divulgação das canções era feita através de fitas cassete, gravadas quase sempre amadoristicamente. Copiadas com a duvidosa tecnologia da época, esses registros passavam de amigo a amigo até atingirem uma pequena plateia. Pouco a pouco, surgiram desbravadores que, em oposição ao grande mercado, dispuseram-se a abrir espaços de convívio e consumo para essa plateia: lojas especializadas, programas de rádio e casas de show acolheram esse público, que, assim, ganhou contornos de uma comunidade. Pequenas gravadoras começavam a colocar nesse mercado restrito, mas fiel, álbuns desses artistas. Ganhava consistência o universo da música alternativa, também conhecida como underground. Fortalecia-se uma cena que desenvolvia seus próprios códigos de criação, de vestuário, de conduta. O heavy metal, como outros movimentos alternativos do período, colocava-se como uma força de contestação e uma alternativa de existência jovem, fora do sistema massificador e alienante.

Esse processo se desenvolveu, como se vê, a partir de uma dimensão individual até alcançar uma dimensão coletiva. Como outros movimentos de contestação jovem, o heavy metal atingiu primeiramente jovens solitários, que chegavam a ele através de informes isolados e o descobriam no silêncio de seus quartos. Sua transformação em um movimento é ao mesmo tempo causa e efeito do contexto brasileiro das décadas de 60, 70 e 80. A falta de perspectiva política e a constante crise econômica, por um lado, e o desenvolvimento industrial e a organização de movimentos sindicais e de luta ideológica, por outro, constituíram-se em terreno fértil para o desenvolvimento de ações rebeldes jovens a partir do final da década de 1970. A chamada região do ABC paulista, com sua nascente tradição de um proletariado engajado, centralizou muito desse processo. Em outros grandes centros urbanos brasileiros, fenômeno semelhante aconteceu. Pouco a pouco, o jovem admirador de heavy metal deixou a solidão de suas audições para expressar sua visão de mundo através de canções próprias. Esse deslocamento, da solidão do quarto à participação em espaços de apresentação e troca de material, corporifica bem a trajetória do heavy metal como movimento no Brasil.

Em Belo Horizonte, esse processo se desenhou dentro de contornos muito particulares, o que talvez explique em parte não só a força do movimento na própria cidade, mas também seus ecos em outras partes do mundo. A capital mineira é, talvez, o primeiro centro urbano que se deparou com a necessidade de superação e autoafirmação. Diferentemente dos cariocas, óbvios irradiadores culturais, ou dos paulistanos, cosmopolitas e naturalmente referenciais, o belo-horizontino precisava construir e conquistar seu espaço. Isso implica, por um lado, um movimento de resistência, de interiorização, de apego a raízes; por outro, um movimento de superação e autoimposição. A necessidade de ser do mundo e, ao mesmo tempo, ser Minas Gerais contribuiu para a existência das tensões que tornaram o heavy metal belo-horizontino típico. Nos álbuns seminais do estilo na cidade – como o split Século XX/ Bestial devastation, do Overdose e do Sepultura, ou a coletânea Warfare noise – são nítidas tanto a presença crítica da religiosidade, do trabalho doméstico, da tradição familiar, traços tipicamente associados à cultura mineira, quanto a inspiração canônica vinda do heavy metal dos centros brasileiros e de outras partes do mundo. O fantasma, a inconfidência, o ar da serra, o ponto de tensão entre a alma da fazenda e a alma da cidade entre outros elementos formadores da cultura mineira continuaram presentes em toda uma linhagem de bandas locais, como Multilator, Holocausto, Chakal, Maybem, entre muitas outras, conquistando adeptos entre os fãs de heavy metal em outras culturas marginais do mundo e desenvolvendo um sotaque particular de rebeldia metaleira em Belo Horizonte.

Os ecos das guitarras distorcidas ainda se fazem muito presentes no início do século XXI. À medida que os anos 90 se aproximavam, o movimento heavy metal aparentemente se enfraquecia no Brasil. A conclusão do processo de redemocratização, a concretização da participação trabalhista em várias esferas do poder e a construção de uma almejada estabilidade econômica, inédita para a juventude brasileira, contribuíam para um clima de serenidade destoante das vertentes metaleiras mais extremadas. Muitos daqueles jovens, chegando à vida adulta e assumindo papéis profissionais, deixaram a música para se dedicarem a outras atividades. No plano cultural, a contratação de várias bandas internacionais por grandes gravadoras, embora pudesse ser igualmente compreendida como uma assimilação pelo sistema dominante, foi também festejada como a consagração de uma proposta, o que trouxe a muitos artistas do movimento um senso de conclusão e um novo direcionamento poético-musical. Diluindo-se por outros estilos e se reconstruindo, o heavy metal foi tanto celebrado quanto diluído, o que alguns viram como conquista, e outros, como neutralização. Histórias, porém, ficaram por ser contadas. As letras, as gravações, as capas de disco e outros registros haviam deixado sua marca na cultura jovem brasileira e continuaram a ser redescobertas, inspirando novas gerações. Espaços abertos para a cultura alternativa continuaram em funcionamento, enriquecidos pelas ferramentas de comunicação em uso a partir do advento da internet. Enquanto ganha início o século XXI e o Brasil caminha rumo a um embate com seus problemas, como a desigualdade social, a corrupção e a discussão sobre os segredos soterrados desde o fim da ditadura militar, é apropriado que os remanescentes do heavy metal brasileiro se organizem a si mesmos, na tentativa de atribuírem significado à sua contribuição para esse processo. Embora não faça mais sentido pensar em uma juventude massificada e coesamente agrupada ao redor de um projeto rebelde comum, grupos diversos se valem desse legado para se engajarem em seus próprios projetos de rebeldia.