Revista Marimbondo

Um teto todo nosso

“Uma história sempre começa
antes que possa ser contada”.
Sara Ahmed, 2019

É de manhã ainda cedo, abro a caixa de e-mail
e tomo café. Recebo a newsletter “da revista dos
livros”, com o assunto “Escritoras mundo afora,
Yara Nakahanda Monteiro e Carla Madeira”.
Rolo a página (!), a primeira chamada é
sobre o livro de estreia da luso-angolana Yara
Nakahanda Monteiro, Essa dama bate bué!,
lançado em 2021. Há um podcast e uma longa
matéria sobre ele, cujos títulos trazem termos
como “olhar feminino” e “história de mulheres”.
Abaixo da foto de Ailton Krenak, ativista
indígena brasileiro, duas linhas dedicadas à
palestra da escritora mineira Carla Madeira,
que também esteve presente no palco da Feira
do Livro de SP. Entre uma coisa e outra, salta
aos olhos: “Um grande dia em São Paulo”, um
chamado a escritoras para a foto que seria
realizada durante o evento, na escadaria Patrícia
Galvão, no Estádio do Pacaembu. A inspiração
era “Um grande dia no Harlem”, fotografia
realizada por Art Kane, em 1958, para registrar
as/os jazzistas que tocavam em Nova Iorque
naquele momento. Pelo menos outras 20 cidades
brasileiras, além de Lisboa e Londres, toparam a
empreitada, algumas com mais de uma centena
de participantes. Volto à conversa, dias antes, em
um grupo de WhatsApp do qual participo, em
que mulheres com publicações em nome próprio
– seja em formato impresso, e-book ou vídeo,
requisito para aparecer na imagem – debatiam
sobre o local escolhido para a foto em Belo
Horizonte, o Centro Cultural Banco do Brasil,
na região Centro-Sul, e sobre como o convite
estava sendo feito e aonde chegaria, por
exemplo, se em escritoras dos nossos círculos
sociais fora dos circuitos centrais da cidade.
Acompanhando a repercussão nas redes,
percebo que muitas dessas indagações não
começaram nem se limitaram à capital mineira,
tampouco a 2022.

(!) Há dias em que me dou o luxo
de postergar leituras úteis – as
acadêmicas, as notícias, as
contas, as mensagens nas
redes sociais – pelas não
necessárias, ainda que tente
me convencer da utilidade
dessas outras para o ofício
que insisto em não dar nome,
como agora.

 

Lacunas (mais do que) centenárias

“Eu costumo dizer o seguinte, foi uma festa
feita por homens da elite que convidaram
seus pares”, conta a professora de Letras da
UFMG, pesquisadora e militante feminista,
Constância Duarte Lima, sobre a Semana de
Arte Moderna de 1922, cujo centenário vem
sendo celebrado desde o início do ano. Nos
encontramos na véspera de uma palestra para
a qual foi convidada a falar sobre as escritoras e
o modernismo. Jornalistas, poetas, romancistas
e dramaturgas como Maria Sabina, Gilka
Machado, Ercília Nogueira Cobra e Júlia Lopes
de Almeida são alguns dos nomes excluídos da
numerosa lista que faz questão de lembrar em
detalhes. Para não dizer que não falamos das
convidadas, consta que estiveram presentes as
artistas plásticas Anita Malfatti e Zina Aita, e a
pianista Guiomar Novaes, internacionalmente
conhecida. Nem mesmo Tarsila do Amaral,
que na época residia fora do país, esteve
presente, lembra Constância. Júlia Lopes de
Almeida, autora de mais de 40 títulos, chegou
a participar da criação da Academia Brasileira
de Letras (ABL), mas não foi incluída no quadro
de literatos da casa, todos homens. Gilka e
Ercília, por sua vez, escandalizaram a sociedade
conservadora – incluindo Mário de Andrade, que
tachou Gilka de escandalosa – com o erotismo
de seus versos e de sua prosa ensaística.

“Elas não estavam afinadas com o projeto
modernista tal como aqueles senhores
pensavam, iam muito além da questão estética
e das picuinhas da língua”, brinca Constância
Duarte, “elas olhavam em outra direção,
tentando contribuir para o avanço da condição
feminina na época”. A condição feminina a
que se refere é paralela àquela reivindicada
por Virginia Woolf em dois artigos lidos,
na mesma década da festa modernista, na
Newnham College e Girton College, faculdades
inglesas exclusivas para mulheres – em 1929,
esses artigos foram editados e publicados
sob o título Um teto todo seu (ou Um quarto
só seu, em tradução alternativa para A Room
Of One ‘s Own). Partindo da constatação das
diversas desigualdades a que as mulheres
de seu tempo eram submetidas – desde o
financiamento para as instituições de ensino às
profissões permitidas para um gênero e outro
e a possibilidade de gerir o próprio salário –,
espaço e dinheiro para se manter, no argumento
de Woolf, são condições necessárias para que as
mulheres possam escrever ficção.

Longe de ter instituições de ensino superior
exclusivas, ou as condições ideais propostas
pela autora inglesa, por aqui as mulheres
também construíram e se organizaram em
torno de reivindicações próprias. Em 1922, ano
da festa modernista, foi fundada a Federação
Brasileira pelo Progresso Feminino, com a
bandeira do sufrágio universal. De acordo com a
pesquisadora Nailda Marinho, ( ! ) a Federação,
presidida por Bertha Lutz, política e ativista
pelos direitos das mulheres, discutiu em seus
congressos temas como “a nacionalização do
ensino público, a educação doméstica, o ensino
primário, a formação para o magistério, o ensino
secundário e o superior para as mulheres”.
Antes disso, em meados do século XIX, algumas
mulheres – leia-se brancas, letradas, em sua
maioria professoras, artistas ou profissionais
liberais da elite – encontraram nos jornais
espaço para debate de ideias e experimentação
literária. A pesquisa de Constância Duarte,
publicada no livro Imprensa feminina e feminista
no Brasil: século XIX (2016), mostra que muitas
delas chegavam a escrever um jornal inteiro,
do editorial ao poema, além das traduções de
notícias e textos que recebiam de diversos
países, principalmente dos Estados Unidos, da
França e Inglaterra. Foi nessa imprensa feminina
e, (por vezes), feminista, que muitas se fizeram
escritoras e publicaram os seus primeiros textos.

Paradoxalmente, antes de ter acesso ao
trabalho de suas conterrâneas brasileiras da
virada do século, que hoje ela nomeia com
tanta facilidade, foi em obras por muito tempo
consideradas clássicas, como Um teto todo seu,
que pesquisadoras da geração de Constância
Duarte tiveram contato com os primeiros textos
explicitamente feministas em sua formação.
“As escritoras brasileiras do século XIX e
início do XX sofreram de memoricídio, que é
o apagamento e assassinato da memória. As
obras não foram reeditadas e não entraram nos dicionários
bibliográficos”, explica Constância, que vem se dedicando
nas últimas décadas, junto a diversas pesquisadoras e
editoras, a preencher algumas dessas lacunas. ( ! )

 

Do que se alimenta uma escritora

Em 1980, a artista, ativista e pesquisadora chicana Gloria
Anzaldúa, em um de seus mais famosos textos que circulam
traduzido entre nós, “Falando em línguas: uma carta para as
mulheres escritoras do terceiro mundo”, faz um chamado:
esqueça o quarto só para si. Em suas palavras, “escreva
na cozinha, tranque-se no banheiro. Escreva no ônibus ou
na fila da previdência social, no trabalho ou durante as
refeições, entre o dormir e o acordar. Eu escrevo sentada no
vaso. Não se demore na máquina de escrever, exceto se você
for saudável ou tiver um patrocinador – você pode mesmo
nem possuir uma máquina de escrever. Enquanto lava o
chão, ou as roupas, escute as palavras ecoando em seu corpo.
Quando estiver deprimida, brava, machucada, quando for
possuída por compaixão e amor. Quando não tiver outra
saída senão escrever”. ( !)

Escreva onde der – quantas outras escritoras, nos
lugares mais impensáveis aqui e ao redor do mundo,
materializaram esse chamado, conscientemente ou não?
Poderíamos começar, ou melhor dizendo, continuar
esse exercício numa lista que será sempre incompleta.
Da imprensa feita por e para as mulheres do século XIX
aos coletivos de artistas, oficinas de escrita, pequenas
editoras, slams, clubes de leitura e movimentos sociais
nos quais muitas de nós continuamente se formam. Qual a
pertinência, então, de reivindicar esse teto ainda hoje?

***

(!) “Pesquisa analisa a trajetória de inserção das
mulheres no ensino superior”. Disponível em:
https://siteantigo.faperj.br/?id=2748.2.6.
________________
Além do trabalho de pesquisa, destaca-se a
reedição, tradução, digitalização de acervos e
circulação de textos pouco conhecidos, processos
muitas vezes realizados de forma artesanal.
A Editora Mulheres, criada por Zahidé Muzart,
o periódico Cadernos Pagu, do Núcleo de Pesquisa
Pagu (Unicamp), a Revista Estudos Feministas
da UFSC e o GT Mulher na Literatura da Anpoll,
além de publicações como Traduções da cultura:
perspectivas críticas feministas (1970-2010),
são notórios nesse movimento.
________________
ANZALDÚA, Gloria. [1980] Falando em línguas:
uma carta para escritoras do terceiro mundo. In:
Revista Estudos Feministas, Florianópolis, v. 8, n. 1,
p. 229, jan. 2000. Disponível em: <https://periodicos.
ufsc.br/index.php/ref/article/view/9880>. Acesso
em: 4 abr. 2019.
________________
WOOLF, Virginia. Um teto todo seu.
São Paulo: Tordesilhas, 2014.

 

Logo no início do texto, Virginia Woolf escreve:
“É curioso que os romancistas nos façam acreditar
que os almoços são invariavelmente memoráveis
por algum dito espirituoso ou algum feito muito
sábio. Mas eles mal dizem uma palavra sobre o que
se comeu. Faz parte de seu costume não mencionar
sopa e salmão e pato, como se ninguém fumasse
um charuto ou tomasse uma taça de vinho. Aqui,
contudo, tomarei a liberdade de desafiar esse
costume.” ( !)

Assim como Woolf (esqueça sopa e salmão e
pato e charuto e vinho), Dalva Soares faz questão
de mostrar as condições de sua escrita. Autora
de Para diminuir a febre de sentir e Do Menino,
ambos publicados pela editora Venas Abiertas,
respectivamente em 2020 e 2021, os livros já
somam mais de 1.300 exemplares vendidos; um
terceiro, também de crônicas, está no prelo e será
lançado pela editora Martelo. Da produção à venda
das obras, tudo acontece pelas redes sociais nas
quais publica periodicamente desde 2014. É pelo
Facebook que comecei a acompanhar Dalva, o dia
a dia exaustivo de quando atuou como professora
da rede pública, a criação solo “do menino”, livros
e pessoas que é preciso conhecer. Ela conta que foi
ali que se tornou “a cronista” de sua cidade natal,
Baldim, para onde retornou para a escrita da tese –
período de quatro anos que rendeu mais de
400 textos.

As contínuas migrações (de Baldim para Belo
Horizonte, depois Viçosa, Florianópolis, Lisboa,
Baldim e Belo Horizonte novamente) no percurso
de sua formação acadêmica lhe renderam
diferentes tetos que, ainda que não definitivos,
permitiram essa escrita, “com cheiro de alho e
respingada de óleo”, emergir. Quase sempre, com
a ajuda de outras mulheres que seguram o aluguel
e emprestam dinheiro para a impressão dos livros,
tem feito essa aposta em conjunto. Um teto todo
seu feito de recursos construídos a muitas mãos.

Quando nos encontramos, ela estava dedicada à
escrita do seu primeiro romance, uma biografia
ficcional das empregadas de Clarice Lispector,
personagens reais que lhe apareceram na leitura
apaixonada de crônicas e cartas da autora, que
Dalva conhece praticamente de cor: Aninha,
“uma mineira calada, que não tinha os dentes da
frente e queria ler um livro da patroa”, e Jandira,
a cozinheira. Nas duas mesas de trabalho, toda a
obra de Clarice e suas biografias dividem espaço
com trabalhos acadêmicos e publicações de apoio,
como A Aventura de ser dona-de-casa (dona-de-
casa x empregadas), de Tânia Kaufmann, irmã
de Clarice, compondo o acervo da pesquisa que
vem realizando nos últimos meses. “Quando eu
leio esse material e vejo que Clarice reproduzia
racismo, preconceito de classe, que não era uma
coisa tranquila, se sentia culpada de precisar de
empregada, eu vejo essa humanidade, isso me
atrai”, conta Dalva.

Por que é tão difícil para uma mulher escrever
ficção? Retorno, como pergunta, a afirmação
recorrente de Dalva (presente também na obra
de Virginia): “O jeito que me permiti a começar
a escrever foi falando de mim. Eu não me dizia
escritora, mas cronista de Facebook, me ausentando
da crítica. E o meio também nos oprime. Por
exemplo, o discurso de que todo mundo quer
escrever faz com que tantas mulheres, assim como
eu, passem a ter ainda mais medo de se assumir.
Se colocar nesse lugar tem um custo muito alto.”
Ela completa: “Sempre admirei Carolina Maria de
Jesus, ela nunca teve problema em dizer ‘eu sou
uma escritora e vou colocar todos no meu livro’,
tinha clareza dessa necessidade existencial”.

Silenciosas festas de mulheres

Talvez seja essa tal “necessidade existencial”, de
que fala Dalva e Carolina Maria, que leve tantas
mulheres a construir e partilhar escritas por tetos
comuns. “Muitas mulheres, assim como eu, ao final
disseram que não sabiam que se sentiam daquele
jeito como se anunciaram”, conta Maria Carolina
Fenati, idealizadora e coordenadora da editora
Chão da Feira, sobre a experiência da oficina
Escrita e Maternidade, por ela ministrada em
2019. Os encontros reuniram um público diverso
de mulheres, em sua maioria mães que, numa
raríssima exceção, se viram durante algumas horas
sem as/os filhas/os, podendo falar e escrever sobre
si. Um verdadeiro convite para tornar-se “Ela” –
foi por meio do uso coletivo deste pronome que
muitas, “esquecidas não só socialmente, mas por si
mesmas”, se permitiram borrar os limites da ficção
e elaborar a partir de seus próprios lugares.

Carolina tem a filha Sara por perto enquanto
conversamos. Na cozinha, o feijão cozinha para
mais tarde. Junto às suas parceiras de editora,
também mães, muito do trabalho é feito
enquanto as “crias” dormem – preparação e
edição de livros, projetos submetidos a leis de
incentivo e o Caderno de Leituras, que já conta
com mais de uma década e 150 números.
A consciência da necessidade desse cuidado,
que é coletivo e cotidiano, tema de diversos
dos textos traduzidos no Caderno, transborda
páginas e telas. “Quando você está andando na
rua e vê outra mulher, e nessa troca de olhares
consegue criar um teto todo seu momentâneo
com ela, ou quando você está numa fila e tem
uma criança chorando, que tipo de acolhimento
você dá para ela, tudo isso é criar esses espaços”.
Carolina fala de uma experiência que parece
capaz de reescrever a cidade.

No limite, a própria cidade também é esse teto,
provoca Maraíza Labanca, escritora, editora da
Casa Escrever e idealizadora do Espaço a’mais,
que oferece oficinas de escrita individuais
e coletivas, além de promover eventos e
lançamentos de livros. Assim como em outros
espaços da região Centro-Sul de Belo Horizonte
que promovem a escrita, a presença majoritária
das mulheres em todo o circuito das oficinas,
passando pela edição ao lançamento dos livros,
muitas vezes questiona lógicas utilitárias e
fálicas de produção.

“Você tem que vir com o corpo, mostrar a escrita,
ler em voz alta, muita coisa pode acontecer.
Com as mulheres, você dá uma faísca de
coragem e elas vão e se jogam, publicam,
o livro não precisa ser um objeto sagrado”,
conta Maraíza a partir de sua experiência
como oficineira e também escritora. O espaço
é propício ao voo: saindo da movimentada
Avenida Brasil, número 75, sala 2, numa vila
comercial, o jardim se expande dentro e fora da
casa, que abriga gente que vai para ler, escrever,
trocar livros e conversar sobre, entre outras
coisas, literatura.

“Estar aqui, com um monte de mulheres
escrevendo, é uma festa silenciosa”, completa.

***

O Harlem de meados do século XX que inspira
a foto se faz presente, para mim, através dos
textos de Alice Walker, quem me apresentou
Zora Neale Hurston, Jean Toomer e outras/os importantes
artistas da literatura, da música, da dramaturgia e das
artes visuais. O Renascimento do Harlem foi um período
e também um movimento que, do seu epicentro, em
Nova Iorque, se alastrou por aqui, em experiências como
a criação dos Cadernos Negros, na década de 1970,
publicação que fez circular nomes como Conceição
Evaristo e Miriam Alves.

“Basta estar na foto se a gente não estiver na programação,
na curadoria?”, interpela Dalva Soares. Ela conta de suas
amigas residentes em São Paulo que também não foram ao
evento, devido à dificuldade de deslocamento no domingo,
e da sua própria mobilidade limitada em Belo Horizonte.
Os gargalos do mercado editorial que atravessam a
imagem são conhecidos de longa data, e não ficam para
trás quando uma mulher, mas também outros corpos
excluídos da norma conseguem publicar um livro. Ainda
assim, pude presenciar várias mulheres que, pela primeira
vez, empunhando suas obras impressas ou pelas telas,
fizeram-se vistas e reconhecidas como escritoras.

Enquanto isso, escrevo o texto para a Jurema ( ! ),
publicação independente do coletivo de escritoras do qual
faço parte desde 2019, ao lado de Carina Gonçalves, Glau
Nascimento, Luciana Campos, Olívia Gutierrez e Thaís
Campolina. Escrevo, não, faço mais de um esboço, ensaio
começar, vou atrás da tal Bic verde que possa ajudar a
encontrar minha própria língua.

Se você perde sua caneta ( ! )
e tudo o que encontra é um lápis quebrado no chão
e para o lápis não há apontador
e o apontador está na loja
e seu bolso não tem dinheiro

e se você procura de novo
e tudo o que encontra é uma caneta Bic
e a Bic que você precisa é verde

e se ela aparecer debaixo do estofado do sofá
mas o sofá está sujo e você de repente quer limpar
embaixo das almofadas
mas não tem aspirador de pó e o aspirador está na loja
e seu bolso não tem dinheiro

não é a sua caneta que você está procurando
é a sua língua e aquelas que falam através dela
suas avós e as pombas e aranhas negras
circulando nos cantos da sua garganta

é a sua língua
e se você não consegue encontrar a sua língua
não saia à procura da gata
você sabe que não a encontrará
ela está na cozinha da vizinha comendo Friskies
ela está no quintal da vizinha fazendo amor

se você não consegue encontrar a sua língua
pare de procurá-la
porque você se ocupa tanto dessa procura que ela não
consegue te encontrar
as pombas estão ficando zonzas e suas avós de saco cheio

fique parada e deixe que elas te encontrem
elas virão quando estiverem prontas

e quando elas estiverem

não terá importância se seus bolsos estão vazios
se você escreve com uma Bic verde ou uma Bic preta
ou com o sangue do seu dedo
você escreverá
você escreverá

Me questiono, cada vez mais, o que se espera
das escritas das mulheres, de que mulheres
falam tais escritas, no limite, a própria
pertinência da categoria mulher, contaminada
por minhas leituras ( ! ), úteis e controversas, de
Alice Walker, Monique Wittig, Judith Butler,
Chandra Mohanty, Saba Mahmood, Maggie
Nelson, Lélia Gonzalez, Patrícia Hill Collins,
Sara Ahmed.

A escrita (e a escritora) que virá, por tetos
nossos ou não, já está sendo.

(!) Para mais informações: https://
juremanacidade.wordpress.com
_____________

“Se você perde sua caneta”. Título
original: “If you lose your pen”, de
Ruth Forman, publicado no livro
Flat-footed truths: telling Black
women’s lives, editado por Patricia
Bell-Scott e Juanita Johnson-Bailey,
1998. Tradução livre de Katia
Costa-Santos.
_____________
Leituras que hoje nos encontram
especialmente pelo trabalho de
disseminação, iniciado – há mais de
quatro décadas – por pesquisadoras
e teóricas brasileiras, como
Angélica Soares, Claudia Lima
Costa, Constância Lima Duarte,
Heloísa Buarque de Hollanda,
Ildney Cavalcanti, Izabel Brandão,
Leda Maria Martins, Lucia Castello
Branco, Luciana Borges, Nádia
Battella Gotlib, Rita Terezinha
Schmidt, Sandra Goulart Almeida,
Susana Bornéo Funck, Zahidé
Muzart e tantas outras.