Foi em uma noite de abril de 2011 – o motorista pode confirmar. Ele guiava o ônibus, já vazio, morro acima. Ela, sozinha, descia leve. Tinha os cabelos longos, loiros, encobertos por renda branca como a que usam as noivas. A distância não deixou ver, mas, sob a mortalha alva, trazia nas narinas dois chumaços pesados de algodão, barreira áspera para impedir que vazasse o que tem do lado de dentro. Sem dizer palavra, seguia inscrevendo nas ruas o cheiro doce da flor, cujo perfume só se sente à noite.
Na encruzilhada, seguiram caminhos opostos. Mas, desde aquela madrugada, Carlos espera mais uma aparição da moça-fantasma, Maria-Que-Morreu-Antes, como a que narrou o outro Carlos, o poeta de Itabira [!]. Em suas viagens noturnas, deixa a câmera fotográfica sempre à mão: quer provar que ela, que é feita de vapor e lembrança, anda também pelo mundo da carne. Provavelmente não sabe que, se assuntar na barbearia da rua Itapecerica ou ali na padaria, não será indagado pelo registro. Por lá, também se lembram de quando a Loira do Bonfim andou na Lagoinha.
[!] “Eu sou a Moça-Fantasma / que espera na Rua do Chumbo / o carro da madrugada. / Eu sou branca e longa e fria, / a minha carne é um suspiro / na madrugada da serra. / Eu sou a Moça-Fantasma. / O meu nome era Maria, / Maria-Que-Morreu-Antes”, diz o primeiro verso do poema Canção da Moça-Fantasma de Belo Horizonte, de Carlos Drummond de Andrade, presente no livro O Sentimento do Mundo…
Ela foi primeiro avistada na rua do Bonfim, saindo do Cemitério. “É uma noiva”, alguém arriscou. Para outros, não restavam dúvidas, era assombração. Apreensivos, céticos e curiosos observavam enquanto a figura de vestes brancas se aproximava lentamente com madeixas douradas, imagem que remetia àquela da personagem feminina narrada por tantas vozes masculinas a partir da década de 1940.
Segundo alguns, tinha hora marcada. Nos tempos em que os trilhos do bonde ligavam o centro de Belo Horizonte aos bairros periféricos, era por lá que ela aparecia. Embarcava na última viagem da noite, rumo ao ponto mais perto do Cemitério – um baita susto em potencial para as 73 milhões de pessoas que chegaram a utilizar o transporte público anualmente depois de sua inauguração em 1902. Depois de 1963, quando o sistema, relegado à obsolescência, foi permanentemente aposentado, outros relatos localizavam a Loira na famosa zona boêmia da Região Noroeste.
A moça teria frequentado os mesmos bares e esquinas sobre os quais proseia Piroli [!] – a Lagoinha dos bêbados, das putas, da “fina flor da malandragem” e da única e sempre assediada garçonete da praça que jaz hoje debaixo do viaduto [!]. Quando o relógio batia as duas, reza a lenda que a bela mulher aparecia por lá para seduzir um homem e convencê-lo a acompanhá-la até a sua casa. O susto dos desavisados era dar de cara com o território de lápides e mausoléus de mármore, a necrópole construída para abrigar os mortos dez meses antes da inauguração da metrópole dos vivos. O Cemitério do Bonfim aparece sempre como lar dessa assombração sem vítimas fatais, aniquiladora apenas de um certo ideal de masculinidade. Erguido sob os mesmos ares de modernidade que nortearam a construção da capital mineira, o sepulcrário nasceu secularizado, afastado dos arredores das igrejas – um passo para o rompimento com o modelo colonial que aspirava o engenheiro Aarão Reis. Entre os anos de 1897 e 1941, foi o único abrigo para os mortos de Belo Horizonte, residentes das lápides de pedra que hoje recebem turistas.
[!] O contista Wander Piroli nasceu em Belo Horizonte em 1931. O livro Lagoinha, da coleção BH de Cada Um, reúne textos escritos por ele, ao longo de sua trajetória, sobre o bairro em que nasceu e morou durante muitos anos.
A Praça Vaz de Melo, “porta de entrada” para o bairro, era reduto de boêmios e ponto de encontro de compositores, especialmente os de samba. A implosão da praça, em 1981 — para dar lugar ao Complexo Viário da Lagoinha — implicou o apagamento de uma parte importante da identidade histórica e cultural da cidade.
Na noite em que deixou sua morada, a moça-fantasma causou alvoroço. Houve quem sugerisse jogar pedras para espantar a assombração. A polícia foi chamada para intervir. Os jornais foram convocados para tentar dar conta da materialização corpórea daquela que juravam ser mito. A comitiva disforme seguia em procissão ao seu encalço, enquanto a noiva-fantasma fazia caminhada silenciosa, circulando seu território de pedras.
Foi avistada novamente em perambulações solitárias, levadas a passos lentos, interrompidos apenas quando se aproximava para entregar, a algum passante corajoso, um pequeno envelope de papel – cartas de amor anônimas, declarações apaixonadas e, talvez não por acaso, marcadas por passados que transbordam no presente. “Os mortos sonham com fantasmas”, diz uma das mensagens escritas em papel amarelado que carregava o mesmo perfume de sono da mulher de véu. Palavras, antes entregues em movimentos lúgubres, até sua portadora desaparecer das ruas para residir nas lembranças de quem vive as muitas Lagoinhas imaginadas.
SOBRE ALMAS E MÁSCARAS
A moça de branco passeou nas penumbras do tradicional bairro da Região Noroeste de Belo Horizonte na mesma época em que quatro personagens mascarados passaram a (re)habitar uma casa na Rua Ibiá. Os atores e as atrizes Eberth Guimarães, Larissa Alberti, Marcelo Alessio, Rafaela Kênia, Rogério Lopes [!] – com participação de Fernando Linares e de Michelle Braga, cuja máscara era a lenda urbana – realizaram em 2011 uma habitação teatral no bairro Lagoinha, uma experimentação dos princípios de inserção do espectador no jogo teatral e do deslocamento da cena para os espaços do cotidiano. Durante nove meses, os velhos mascarados – idosos que teriam vivido boa parte de suas vidas na Lagoinha e que agora retornavam para casa – conviveram diariamente com moradores.
[!] O grupo Teatro Público – hoje formado por Larissa Alberti, Luciana Araújo, Rafaela Kênia e Rafael Bottaro – nasceu em 2011, em função da realização do projeto de habitação teatral desenvolvido no bairro Lagoinha em Belo Horizonte.
Sem nunca revelarem seus rostos, o grupo ocupou o bairro e o cotidiano daquele espaço. Com passos às vezes mais arrastados (é a coluna, que já não é como antes) e vestes iguais àquelas que se usavam para conferir a matinê de domingo no Cine Mauá ou São Cristóvão, passeavam pelas mercearias, pela Igreja, pelos bares e esquinas, sempre papeando com quem estivesse disponível para a prosa. O trabalho teatral contou com uma pesquisa histórica sobre a Lagoinha – as personas imaginadas por cada ator eram figuras que povoam a memória do bairro e que permitiam trazer à tona aspectos da memória daquele espaço como um convite ao diálogo e a uma construção artística permeada pelas relações formadas ali. A vivência oferecia também outras versões para as Lagoinhas narradas nas páginas de jornais e livros – as imagens de um bairro pretérito e decrépito eram desafiadas pelo cotidiano vivo que os mascarados passaram a integrar.
Ao longo do processo, a surpresa e o estranhamento gerados por aquelas figuras foram, aos poucos, se desdobrando em relações de afeto e amizade. Enquanto percorriam a região, não eram mais Rogério, Rafaela ou Larissa. Eram Zé Poeta, Juju e Magnólia – o poeta, a ex-prostituta, agora aposentada, a comadre da Igreja –, velhinhos de carne e osso que inspiravam moradores do bairro (residentes de casas ou das calçadas) a oferecerem um braço de apoio para enfrentar os morros que sobem e descem a Lagoinha. Cada um foi agregando características aos seus personagens a partir da percepção das pessoas com quem conviviam e do que diziam sobre os mascarados. Por meio das conversas e dos laços estreitados pela convivência prolongada, memórias eram reativadas e ressignificadas em um jogo potencializado por aquele espaço que é lar de uma comunidade de vínculos antigos.
Ressignificação das fronteiras entre arte e vida
“A dilatação temporal da experiência de interação possibilita o desenvolvimento de uma relação de cumplicidade com os moradores do bairro. Ao longo dos nove meses, instaura-se uma memória partilhada entre os participantes daquela experiência cênica, pautada pelo jogo entre o real e o ficcional. Com isso, são estabelecidas relações que valorizam não só o momento presente, mas também o caráter de duração de um convívio, que se inicia meses antes, em um tempo passado. Dessa forma, os mascarados passam a integrar o imaginário afetivo da região.
Para entender a qualidade da relação construída a partir desse convívio, é interessante notar que a teatralidade explorada pelo grupo surge de uma dimensão paradoxal. Se, por um lado, a materialidade e a expressividade das máscaras demarcavam claramente um território ficcional para aqueles personagens, por outro, a presença diária e capilar no bairro sugeria, inversamente, uma relação de vizinhança que não dizia respeito ao terreno do ficcional, e sim, ao do cotidiano. Dessa forma, a teatralidade inerente à máscara contrastava de maneira radical com a performatividade proporcionada pela experiência da residência de longa duração.
Segundo relatos dos atores que participaram do projeto, houve uma mudança na maneira como os moradores tratavam os vizinhos mascarados, o que pode ser encarado como reflexo desse paradoxo. Se, inicialmente, eles expressavam uma relação de desconfiança com essas figuras, inclusive questionando porque eles estavam ali ‘fazendo teatro’, com o passar dos meses, esse efeito inicial de ‘não credulidade’ cedeu espaço para a construção de relações afetivas concretas com aqueles ‘novos moradores’, que passaram a ser tratados também como pessoas, não só como personagens. Ou seja, quando os moradores aderem ao jogo ficcional proposto pela habitação cênica, deixam de comportar-se apenas como público e tornam-se também jogadores naquela situação fabular.”
Trecho do artigo “O teatro como dispositivo relacional na habitação cênica Naquele Bairro Encantado”, da jornalista, crítica teatral e doutoranda em Artes Cênicas pela ECA/USP, Julia Guimarães [!].
[!] Trabalho enviado para a equipe da Revista Marimbondo em resposta à convocatória pública realizada em abril de 2016. O artigo foi originalmente publicado na revista Pós (v. 5, n. 10, p. 44 – 57, novembro, 2015)
Essa experiência culminou no espetáculo de rua Naquele Bairro Encantado, realizado, pela primeira vez, em agosto daquele mesmo ano. Sem um texto prévio, a ação foi um convite a uma deriva pela Lagoinha da atualidade em diálogo com memórias e imagens de seu passado. O trabalho foi dividido em episódios: no primeiro, “Estranhos Vizinhos”, o público foi convidado a fazer um passeio pelo bairro acompanhando os mascarados em ações cotidianas e tomando parte das conversas puxadas entre personagens, moradores, transeuntes e espectadores. No segundo, “Ensaio para uma Serenata”, o grupo saía pelas ruas oferecendo canções populares dos meados do século passado. No terceiro, “Jogo da Velha”, a casa habitada pelo grupo de mascarados foi aberta aos vizinhos e ao público visitante, ação que oferecia um olhar sobre o universo íntimo daquelas figuras que ganharam vida completa durante a experiência.
Quem acompanhava o papo fácil entre habitantes da Lagoinha e mascarados, já tão confortáveis naquele espaço e no diálogo, era prontamente convidado a entrar no jogo cênico – uma ficção viva e pulsante atravessada pela realidade, em que os moradores eram também atores ativos e personagens da ação teatral. Para Dona Lourdes, moradora antiga do bairro que vivenciava Alzheimer avançado, as mascaradas Juju e Magnólia, aquelas figuras com corpos cênicos tão parecidos com seu próprio, eram suas amigas de infância. Os laços criados foram estreitados no tempo de vivência compartilhada e nas serenatas realizadas em frente à sua casa – que abria de bom grado para receber todo o público da cantoria e matar saudade dos velhos compadres e comadres. Com o falecimento de Dona Lourdes, sua família convidou os velhos para uma última música. Sob as máscaras, lágrimas e canções com voz embargada se misturavam na despedida. “Igual uma borboleta dançando triste por sobre a flor”, entoavam, como Maria Bethânia, a pedido da família. Favorita de Dona Lourdes, a canção “Meu primeiro amor” passou a integrar o repertório das apresentações.