Revista Marimbondo

Apenas diferente

             // Jornalista e historiador, Valdir Ramalho nasceu e foi criado na Pedreira Prado Lopes

É o senso comum que costuma guiar o olhar sobre o cotidiano nas favelas de Belo Horizonte, uma perspectiva um tanto contaminada pelo preconceito. Talvez deva-se a isso uma crença, compartilhada por quem não convive nestas áreas, de que sua população vive o tempo todo acuada, dentro de suas casas, temendo a violência urbana.

Felizmente, a realidade se apresenta de outras formas. Um exemplo é a Pedreira Prado Lopes (PPL), localizada na região Noroeste da capital. Apesar de ser considerada um bairro de grande risco social, não se adota por lá um padrão de vida reclusa, com ruas vazias e silenciosas.

A constante interação, que dá vida ao conceito de comunidade, é praticada pela maior parte dos moradores da Pedreira. E a construção desta relação de proximidade pode ser explicada por fatores históricos. Criada sob o signo da modernidade, a nova capital de Minas Gerais foi planejada dentro de um cinturão protetor — a Avenida do Contorno, responsável por delimitar o centro e a periferia. Mas, localizada a pouco mais de três quilômetros do centro, a PPL podia facilmente se confundir com ele. Com o crescimento da cidade, uma região tão valorizada passou a ser objeto de disputa. O valor de indenizações e questões ligadas à logística dificultavam a transferência da favela para outra região, mas, ainda assim, de tempos em tempos, subterfúgios eram criados para desapropriar localidades no bairro. Especialmente na década de 1980, a PPL sofreu uma das maiores intervenções por parte do poder público. Visando melhorias no sistema de saneamento básico, vários imóveis foram desapropriados com pagamento de valores indenizatórios bastante aquém dos praticados no mercado.

Essa história de exclusão, criada em nome de uma cidade dinâmica e moderna, é um dos principais fatores capazes de explicar laços tão fortes entre os moradores da Pedreira. E quando o foco é cultura, o senso de comunidade é ainda mais fortalecido.

A GENTE NÃO QUER Só COMIDA, A GENTE QUER DIVERSÃO E ARTE
Se a rua é espaço do povo, na PPL é ela que dá o tom das manifestações culturais. Quando realizadas na rua, elas contam com o prestígio da população, que participa de forma democrática, entre homens, mulheres, crianças e idosos. Um calendário fixo de festas — como as juninas, de carnaval e dia das crianças — são organizadas durante todo o ano por líderes formais e informais do bairro. Já aos fi nais de semana, bailes funk e apresentações de samba de roda invadem a noite, fazendo grande sucesso. Durante o dia, ruas como Serra Negra, Escravo Isidoro e Carmo do Rio Claro se veem tomadas de pessoas que dançam livremente ao som que vem dos carros. “Aqui é assim. A gente se encontra na rua, se diverte na rua. Se você chega e não vê ninguém, pode procurar um canto e se esconder que a coisa não está boa”, declara Wan, 23 anos, há vinte morador da Pedreira.

Nos eventos fixos, como as festas juninas, há espaço para grupos formados dentro do bairro, como Meninos do Morro e Luz do Repente. “Essas festas são importantes, pois dão ao morador a oportunidade de mostrar seu talento. Além disso, valoriza o que está sendo produzido dentro da PPL e mostra que não se produz só traficante”, afirma uma das coordenadoras do Meninos do Morro, Viviane Santos.

Dos diferentes eventos culturais realizados na Pedreira, o baile funk é de longe o mais popular. Ele ocorre todas as sextas-feiras e, a cada quinze dias, o local é revezado. Em uma semana, é no início da Rua Serra Negra, na outra, na Rua Carmo do Rio Claro. O revezamento dos locais está ligado à paz que a comunidade tem vivido desde 2010, quando os grupos que brigavam pelo controle do tráfi co de drogas deixaram as armas de lado. A população, por sua vez, passou a não mais aceitar limites territoriais, antes impostos pela violência.

Festas e eventos bem organizados e sem violência têm atraído cada vez mais gente de outras regiões de Belo Horizonte e região metropolitana. Jéssica Lemos, 19 anos, mora no bairro Serra Dourada, em Vespasiano, e há um ano frequenta as festas na Pedreira. “Confesso que quando fui convidada por um amigo meu, que mora em Venda Nova, horrorizei. Mas vim e agora não saio daqui.”

Mesmo convivendo com o preconceito e com a histórica segregação imposta pela cidade, os moradores da PPL seguem, a seu modo, dando vida às ruas do bairro. A frase de um grafite que convida para o baile funk da paz traduz o espírito da vida cultural no bairro. “Nem pior, nem melhor… Apenas diferente!”.