ENTREVISTA | Regina Helena Alves
Marimbondo: Como Belo Horizonte tem se relacionado com o espaço público? Queremos ser um cartão postal?
Regina Helena Alves: Mais que um projeto político, Beagá é um discurso político que, aliás, nunca deu certo. Vivemos esse eterno buscar algo que nunca somos, a imagem de uma cidade que a gente constitui. Mas há uma diferença entre projetos de saneamento e a nossa vontade legítima de ter uma cidade moderna. E, às vezes, somos convencidos de que para termos a cidade que desejamos é necessário derrubar, revitalizar. Além disso, tem gente que não suporta o outro. E como a rua é, por excelência, o lugar do coletivo, isso fica claro. Beagá não possui nem faz questão de possuir espaços públicos de convivência, com lazeres que todo mundo acessa. Aqui é muito difícil a mistura, sempre foi assim. Somos muito conservadores, mas não temos interesse em dizer que somos, nem de romper com isso. Aliás, temos problema em dizer que temos preconceito, porque acreditamos não ser de bom tom.
M: No livro por você citado Sobrevivência dos Vagalumes, ao tratar do que chama “luzes do poder versus lampejos dos contrapoderes”, Georges Didi-Huberman afirma que “há que se dar os meios de ver aparecerem os vagalumes no espaço de superexposição, demasiado luminoso”. No contexto atual da cidade, como esses contrapoderes podem se fazer enxergar diante de tantos refletores luminosos, como se insurgir? Que caminhos você aponta para que os espaços públicos na cidade se tornem um lugar onde as diferenças convivam?
R: Hoje a gente enfrenta várias violências; ela não está só na Prefeitura. Há poderes hegemônicos que moldam a forma de olhar a cidade. O Código de Posturas, que existe desde o século XVIII/XIX, sempre refletiu isso. A nossa disputa é sobre quais são as regras. Em Beagá, as pessoas se arvoram em dizer o que as outras pessoas precisam. A gente acha que sabe e que tem que dizer para o outro. É necessário pararmos de imaginar que conseguiremos o consenso. Devemos é lutar para garantir que exista o conflito e, assim, criar espaço para as insurgências. A classe média é danada para barrar isso. E Beagá tem mentalidade de classe média. Resolver esta questão é garantir o conflito.
M: Como fazer isso de forma prática? Seja por ocupação pela arte ou não?
R: É necessário parar de achar que vamos criar o espaço de todos. Todos querem estar na praça, por exemplo, mas de modos diferentes. O que deve existir são momentos de negociação. O que acho que está acontecendo é que Beagá tem sido uso de determinados grupos, ora alternados. E eu não quero uma cidade assim, onde cada um tem seu lugar. Eu quero uma cidade misturada. O tempo todo há uma luta na cidade, que se dá quando enfrentamos a nós mesmos. A gente, às vezes, desvia o caminho da luta e bate no “mais fácil”. Pode ser a Prefeitura, os grupos evangélicos que querem fazer shows na Praça da Estação ou as pessoas que lá se reúnem para fazer a Praia da Estação. O que tem de vir à tona é essa disputa, a insurgência é que tem de ficar clara. Brigar com a Prefeitura não é tão difícil, mas brigar na luta cotidiana, às vezes contra nós mesmos, é que é difícil. Deixar isso aparecer, é algo que a gente precisa enfrentar. Passarmos de uma lógica binária para uma lógica que aceita a diversidade. Mas às vezes acho que essa diversidade acabou virando um bolo binário, um bolo amorfo. A diversidade é aceita, a diferença não. E a cidade é diferente. Aliás, é felizmente pelas diferenças e infelizmente pelas desigualdades.
M: De onde vem este discurso “viva a diversidade, mas não a diferença”?
R: Ele está incrustado. Acreditamos que “somos todos republicanos, não somos racistas etc.”, daí colocamos as diferenças nos seus devidos lugares.
M: Como você avalia o que vem sendo proposto por grupos como Paisagens Poéticas, Poro, blocos de carnaval de rua, entre outros?
R: As intervenções artísticas e culturais têm uma resistência contra essa cidade imposta, de marasmo, cidade insensível. Qualquer coisa da cidade que te atordoa, que te tira do lugar é importante. Efetivamente você tem que tirar do lugar. A resistência é para quebrar o sistema. Quem resiste tem algo a questionar, tem um embate. Esses que entram no furdúncio da cidade, que enfrentam a bagunça da cidade, são sim uma potência.