ENTREVISTA | Ana Clara Torres
Marimbondo: Existe alguma novidade no que vem acontecendo na relação entre direitos sociais e a cidade ou isso é uma idealização da juventude atual?
Ana Clara Torres: Na história dos movimentos sociais sempre há uma indagação sobre o novo, como se ele fosse algum tipo de qualidade positiva que devesse acompanhar a ação. O que se percebe ao longo dessa história é que esse novo muitas vezes não é exatamente um novo; seja porque as histórias dos movimentos costumam ser mal contadas, seja porque sempre há recorrência de novos atores, novos aprendizados. E talvez entender essas novas alianças seja mais rico que pensar isoladamente como algo novo. Eu não vejo um nexo imediato entre juventude e novas ou velhas formas de ação. Você vai ter jovens reproduzindo coisas anteriores ou jovens reproduzindo inovações. Inovações não necessariamente portadoras de bandeiras de políticas novas, mas inovações na forma de representação, de reivindicações do espaço público. Nós podemos estar sim vendo reivindicações de democracia, de liberdade, de direito a se expressar, uma série de reivindicações que tem uma história bastante larga, e fazem parte da história de movimentos sociais.
M: Então poderíamos dizer que há uma forma diferente de representação dessas reivindicações sociais?
A: Creio que existe sim uma correspondência entre a efervescência da informação hoje que cria muitas formas expressivas — aí sim, elas são realmente novas — a partir da alteração do conteúdo técnico da vida urbana. Como nós temos uma nova forma de estabelecer o nexo entre técnicas e vida urbana, entre comunicação e vida urbana, temos uma explosão também de novos nexos entre arte e política, entre formas plásticas de ação e representações sociais no espaço público. Existe uma alteração e uma inovação muita intensa nesse sentido. São novas formas de representar as reivindicações sociais do espaço público. E é impressionante como se cria, rapidamente, uma ação inovadora. Mas muitas vezes também são ações fugazes, não são ações que visam à permanência.
M: Ainda sobre a relação entre técnica e vida urbana, caberia incluir como exemplo de novas perspectivas de mobilização na cidade a Marcha das Vagabundas (Slut Walk), ocorrida em algumas capitais brasileiras em 2011? Qual sua perspectiva de análise sobre marchas como essas?
A: Aí me parece que estamos numa circunstância onde técnica, cultura e política se encontram numa nova mobilização mútua, como se fosse uma outra possibilidade de sincronia. Você cria essas novas sincronias e isso modifica a vida urbana e os imaginários também. Em cima disso, se institui um lado da experiência política que se destaca. E isso tem uma história que nem é tão recente assim. Desde Maio de 68, uma data bastante conhecida, há um crescendo de lutas contra a opressão. São lutas de renovação das perspectivas identitárias, sendo uma base de solidariedade nova. Uma perspectiva de luta contra os mecanismos produtores de preconceitos e estereótipos, luta de afirmação do sujeito social, do sujeito político em direção à reivindicação do seu protagonismo. De alguma maneira, o que nós observamos é que o sujeito toma a fala, ele fala, ele luta por falar por si mesmo, e isso é uma alteração grande nos mecanismos institucionais da democracia. Você tem uma transformação da configuração do sujeito social e, portanto, do fator político também. Isto é profundamente baseado nas lutas contra a opressão, numa luta de direitos à construção da própria identidade. Então é uma luta libertária, contra os mecanismos de controle social e de manipulação da vida coletiva. Uma luta de libertação da expressão da vidade alguma maneira.
M: Essa luta — contra a opressão, pelos direitos sociais — tem reivindicado os espaços urbanos?
A: Ela tem se apropriado. Me parece que é uma luta que encontra nos espaços urbanos o seu loco preferencial. Então, de alguma maneira, não somente é a área dessas lutas, uma arena privilegiada, como é também o espaço que admite, até em certo ponto, que as diferenças apareçam. E que essas diferenças se afirmem como positividades e não apenas como negatividades. Existe uma luta que é de afirmação de novos valores, de novas traduções dos direitos sociais e que são novas formas de concepção da própria igualdade pelo reconhecimento das diferenças. Algo que é característico dos espaços urbanos, onde os mecanismos de controle são visíveis e podem ser brutais. Mas esses mecanismos não se instauram como sendo capazes de gerar uma ordem social única. Isso dá margem para que essas lutas eclodam e se expandam e encontrem novas formas ou maneiras de acontecer.
M: Como que as práticas culturais e a cultura têm sido evocadas por essas reivindicações de apropriações dos espaços urbanos?
A: Me parece que não é que seja evocada, ela é praticada. De certa forma, há uma ruptura das distâncias entre arte e política, entre arte e experiência urbana e entre arte e percepção dos direitos, por exemplo. Novas formas de expressão. Expressão política e expressão artística são formas que buscam acesso a esse universo em transformação, cujo epicentro é a cidade. Para conquistar a visibilidade – inclusive pelas reivindicações sociais, o nexo pela arte, o nexo pela teatralização, pela música, pela forma de representação artística – esta expressão política e artística acaba sendo indispensável para a luta política, por conta da força, inclusive da mídia, das formas de comunicação. O que é a visibilidade hoje, o que é conquistar o espaço público hoje, o que é você virar notícia hoje, o que é você virar, de alguma maneira, um sujeito reconhecido, ou ator político reconhecido? As ferramentas desse reconhecimento têm que ser muito amplas e acontecer de maneiras muito mais criativas. Então os locus da criação são mobilizados e mobilizáveis pela ação política e vice-versa. Você vê que a criação política também penetra na própria criação das artes. Há uma hibridação que diz respeito, no meu modo de ver, à instauração de um mundo onde a comunicação é cada vez mais sofisticada, e também um território de disputa. Daí a aproximação em várias áreas: a arte e a política, a experiência urbana e a técnica, tudo isso caminha junto.
M: Essas mobilizações estariam relacionadas com processos de resistência?
A: Creio que são resistências, mas cada vez mais se reconhece que o termo resistência é insatisfatório. Porque a resistência dá a impressão de que você não se adapta e, de alguma maneira, escapa dos mecanismos de dominação e de controle. Não se trata apenas de resistir, trata-se também de afirmar. Afirmações de valores e de práticas legítimas. Há uma disputa do que deve acontecer, do que pode acontecer. A sociedade brasileira é profundamente ativa. O que acontece é que não há uma sistematização, ou não há uma abordagem que reúna realmente a enorme capacidade de ação e afirmação que essa sociedade representa. Fica-se com a ideia de certa apatia, de certa acomodação, que na verdade não existe.
M: Existe uma dificuldade em entender essa amplitude das lutas pelos direitos sociais hoje?
A: Uma dificuldade ou um certo bloqueio, que é uma das maneiras mais tradicionais de ler e fazer política. Um bloqueio por parte da grande imprensa também, em que você não tem uma valorização da ação social. É como se a sociedade não aparecesse, não fosse notícia, a não ser de tragédia ou quando soa absolutamente explosiva. Aí todo mundo se surpreende porque, afinal de contas, “como é que isso aconteceu?”. Há um acúmulo de experiências porque, na verdade, elas não são acompanhadas. E como não é acompanhado, assusta quando aparece. Mas acontece que existem muitas formas da organização, muitas iniciativas culturais, muitos grupos de jovens que são absolutamente criativos. Há uma bela efervescência que pode sim dar margem a bastante esperança, e a uma possibilidade de reinvenção mesmo da política.
M: Qual a medida possível de atuação e conquista de resultado diante desse modo de operação na coletividade?
A: Me parece que os resultados não devem ser cobrados sempre, porque ficamos muitas vezes com a ideia de que os movimentos são de curto fôlego, que eles se acomodam, que já acabou e não aconteceu ou aconteceu pouco. Mas essa leitura não deixa de ser, em certa maneira, antiga. Porque a experiência humana, mesmo que interrompida, pode seguir adiante num outro contexto e se manifestar eternamente. O resultado pode ser experimentar alguma coisa nova, experimentar a dignidade, experimentar se expressar num espaço público, experimentar de alguma maneira compartilhar o outro, a dor do outro ou buscar no outro uma compreensão de si. O resultado deve ser visto de uma maneira muito mais ampla do que geralmente é. De preferência, ele deve atingir a renovação da política, que não acontece se os sujeitos também não se transformam, se não experenciam algo que amplie a sua percepção de si mesmo, da sua capacidade de se fazer presente junto com outros e de procurar futuros melhores. De alguma forma, isso amplia o leque de resultados. A luta por uma institucionalidade mais democrática, pelo cumprimento de promessas políticas, investimentos socialmente justos, pelo direito à apropriação do espaço público etc., tudo isso é um resultado esperado da ação. Mas creio que devemos aceitar que, mesmo em experiências interrompidas e aparentemente menores, há um aprendizado que precisa ser também destacado. Adiante, ele pode dar margem a ações muito mais efetivas. Esse acúmulo de forças e de experiências são promissoras para a conquista de futuros que precisam ser imaginados também. Nós temos hoje uma espécie de contenção do imaginário político. Abrir o imaginário também já é um resultado extremamente positivo.