Revista Marimbondo

LUIZ CAROLINO

Quando, por volta dos anos 1930, Luiz Carolino e Nadir Silvina da Silva mudaram-se para Belo Horizonte em busca de trabalho, adquiriram um lote na Vila Maria Aparecida, atual Bairro Aparecida, região Noroeste da cidade. Por mil cruzeiros, pagos em muitas prestações, construíram sua casa à beira de um então despoluído córrego e lá refundaram o moçambique [!] de Chico Calu sob o nome Guarda de Moçambique de Nossa Senhora do Rosário. Pedreiro de mão cheia, Luiz construiu, ao lado de casa, a primeira sede d’Os Carolinos no Aparecida, feita de adobe, assim como a igrejinha que ele e seu irmão Antenor ergueriam também no Retiro.

[!] De acordo com Leda Martins, em Afrografias da Memória: “Nas festividades, o terno ou guarda de Moçambique é o que conduz as majestades, as coroas e os coroados, e o que representa o poder ritual maior nos rituais reencenados anualmente, poder esse que emana dos tambores sagrados e que guia o rito comunitário”.

Ao longo dos anos, a capelinha do Aparecida seria algumas vezes destruída pelo barranco que sedia com chuva forte e era insistentemente reconstruída pelos filhos e netos de Luiz. Chegava princípio de outubro, o final de semana d’Os Carolinos era tirar terra para dar lugar ao congado, situação que um anteparo construído em 2004 fez mudar, mas isolou o terreiro de uma das passagens para a rua. Antes disso, em um dia de tempestade, o barranco soterrou a capelinha e a casa da capitã e neta de Luiz, Neide de Assis Silva, o que quase matou os filhos que as doenças não levaram. Desde 2001 reconstruída e em pé, a construção divide espaço com outras nove casas de descendentes de Luiz e é lá onde seu bastão [!] de capitão permanece zelando por todas e todos.

[!] De acordo com Leda Martins, em Afrografias da Memória: “Os estandartes das guardas, os mastros, o cruzeiro no adro das capelas e igrejas do Rosário, os candombes, o rosário, dentre outros, são elementos sagrados do código-ritual, investidos da força e energia que assegura o cumprimento dos ritos. Assim, no Moçambique o bastão é o símbolo maior de comando dos principais capitães e no Congo o tamboril e/ou a espada cumprem a mesma função”.

Capitão Luiz não era de falar muito, conversava baixinho, mas bastava levantar o bastão para ser entendido. “Exigente e chique demais”, nas palavras do neto mais velho, Capitão Nelson, que, obedecendo às ordens do avô, aprendeu a mexer com congado e a dançar no ritmo imposto por ele dentro e fora da guarda em formação. Ao lado de Luiz, Raimundo Lino (o Raimundo Tuf Tuf), José Miguel Diniz (o Tiziu Binguêro) e Ciriaco Celestino Muniz, conhecido como Capitão Ciriaco ou Velho Ciriaco, são algumas das figuras que residem de forma nostálgica nas histórias contadas de uma época que os Carolinos localizam como um tempo do “congado verdadeiro”, mais próximo de suas raízes.

Eram tempos de simplicidade e de longas caminhadas. Em dia de festa-grande, após o pão com carne moída e café que Luiz Carolino servia a todos, saíam do Aparecida, seguiam para o Alípio de Melo e, de lá, para o São José, buscando rainhas e reis pelo caminho, para então retornarem ao terreiro. O trajeto de aproximadamente 17 quilômetros, segundo suas narrativas, era vencido por Luiz, Raimundo e outros com os pés descalços. A capitã Mary dos Santos, também neta de Luiz, se lembra de pequenininha torcer pela chuva para aliviar a peleja. Doze horas depois da partida, chegavam para o almoço: arroz, feijão, pele e chuchu. Quando Tiziu foi trabalhar no açougue, carne cozida entrou para o cardápio.

Já as fardas eram feitas com pano reaproveitado dos fardos de açúcar. Nadir era quem cortava, alvejava, costurava, lavava, enxaguava com anil e passava, fazendo a alquimia que transformava os sacos em roupas branco-azuladas. “Agora eles estão querendo vestir roupa bonita. Senhora do Rosário não é isso, Senhora do Rosário é simplicidade, é disso que ela gosta, porque se ela gostasse de boniteza e de luxo, os fazendeiros ricos tinham conseguido resgatar ela do mar”, valoriza Capitão Nelson o passado de sacrifícios pela fé e deposita neles o resplendor da guarda, que chegou a ter 60 coroados e 400 dançantes: “a gente era como se fosse assim, a guarda tava tocando lá naquela esquina lá, o último do trono tava saindo daqui ainda. Era a coisa mais linda a procissão animada subindo a BR ali, aquele trono comprido…”.

“Quando a gente saía de dentro do buraco, lá embaixo não tinha luz direito, aí vinham com as velas, as mulheres vinham todas atrás cantando, era um negócio dos mais lindos”, relembra Mauricio Lino Moreira, Mauricio Tizumba, nascido no Aparecida, sobrinho-neto de Tuf Tuf, integrante d’Os Carolinos desde criança e capitão de congado. O buraco ao qual Tizumba se refere é o próprio terreiro, localizado em um desnível no final da rua de cima, fato que levou a guarda a ficar conhecida pelo nome não mais utilizado de Guarda do Buraco. A alcunha Os Carolinos, em homenagem ao fundador, viria a ser usada décadas depois como uma arma buscada na origem para combater o apelido que consideravam constrangedor.

E se na época de Luiz Carolino a disposição era para longas caminhadas, isso também significava a possibilidade de cumprir muitos ofícios, visitas às festas de outras guardas e irmandades. Em maio, setembro e outubro, acontecia de não ficar um único domingo sem Os Carolinos saírem. Hoje, se entristece Capitão Nelson, “a turma só vai se tiver ônibus especial, e o mais barato custa 20 reais por pessoa”, o que restringe as viagens do ano.

Os tempos também seguiam cercados de mistérios, e, nesse quesito, o nome de Raimundo Tuf Tuf se destaca nas histórias contadas amiúde. O segundo capitão da Guarda, posto alto na hierarquia religiosa, quase não pegava no bastão, visto que sua alegria maior era tocar patangome [!]. Por trás do corpo retorcido e da dificuldade na fala, provavelmente advindos de um distúrbio não diagnosticado, Raimundo era capitão poderoso que, apenas com o olhar, derrubava zombeteiros desavisados. “Ele dançava congado era descalço, igual ao meu avô. Então, o que que acontece: ele tava indo pra nossa festa, e tinha uma turma de rapazinho que sempre os jovens gostam muito de abusar. Então chamaram ele de macaco, e ele não falou nada, ele só riu. Passaram uns quinze minutos, chegou a mãe desse rapaz desesperada lá, correndo atrás dele: ‘ô seu Raimundo, por favor, vamo lá. Ajuda a levantar meu filho’, e o filho dela deitado no chão rolava de um canto da rua no outro. Quando batia do lado de lá, voltava rolando pro lado de cá. Aí Raimundo deu uma risadinha e mandou ele levantar”, conta Capitão Nelson. “Um dos camaradas mais devotos e rezador que tinha, feiticeiro e rezador”, avalia Tizumba, uma das poucas pessoas a acompanharem o enterro do tio-avô que, aos 102 anos, morreu em plena Copa do Mundo e foi enterrado no exato momento em que Roberto Carlos fez um gol. “Eu vi o mundo ao nosso redor gritando e soltando foguete”.

[!] De acordo com Mauricio Tizumba, em Percursos do Sagrado: “O patangome é mais um instrumento sagrado e de resistência do povo negro congadeiro. Tem o formato de bateia. É tocado como se estivesse batendo e na música do mundo sempre existe um instrumento com a mesma função: a de unir e emoldurar e conduzir o ritmo. Quando eu era menino, o preto velho Luiz Carolino gritava assim: ‘chitangome!’. Aí o patangome era o primeiro a ser tocado, depois vinham os outros instrumentos”.

Da mesma época de Raimundo e Luiz era também o Velho Ciriaco. No livro A Voz dos Tambores — Uma história dos Ciriacos, Tizumba o descreve como um homem sábio, de muita fé e enérgico. Quando Luiz partiu para trabalhar um ano em São Paulo, confiou a guarda ao amigo e, ao retornar, decidiu com ele dividir o trono coroado e até mesmo peças sagradas. Dessa forma, irmanada aos Carolinos, foi fundada, em 1954, a Irmandade Nossa Senhora do Rosário Os Ciriacos [!].

[!] A sede da Irmandade Os Ciriacos está localizada no bairro Novo Progresso, em Contagem, e é conduzida pelo Capitão Antônio Muniz, hoje reconhecido como um dos grandes mestres dos Reinados na Região Metropolitana de Belo Horizonte que, com orgulho, rememora sua iniciação na Irmandade Os Carolinos, onde, em suas palavras: “me praticaram desde menino” (Salve Maria, documentário 2004. Realização CRAV/PBH. Direção Cida Reis/ Junia Torres/Pedro Portella).

Luiz Carolino seguiu à frente de seu moçambique até sua morte, em 1967. Para enfeitar seu caixão,
os netos e as netas buscaram flores de laranjeira no terreno do vizinho.

“Ele obrigava a gente, ele forçava a gente. Eu aprendi a tocar foi forçado. Na época, eu era menino ainda eu ficava olhando eles tocarem e ele um dia chegou pra mim e falou: ‘vai ali, pega o patangome e toca aqui’. ‘Vovô, eu não sei tocar’. ‘Pega o patangome e toca aqui’. ‘Ô vovô, mas eu não sei’. ‘Eu tô mandando você pegar o patangome e tocar aqui’. Fui lá, peguei o patangome, tentei, tentei, tentei, e errando daqui, dali, daqui, dali, daqui, dali. ‘Ô vovô, eu não sei’. ‘Não pára, continua’. E foi assim que eu aprendi, foi assim. Ele insistindo e ‘continua, não pára, eu mandei você tocar. Pára quando eu mandar’. Foi assim que eu aprendi a tocar patangome e a mesma coisa ele fez comigo quando foi pra eu aprender a tocar caixa”.
CAPITÃO-MESTRE, NELSON PEREIRADA SILVA, SOBRE LUIZ CAROLINO.

“O vovô batia com o cachimbo na cabeça da gente pra ensinar a dançar congado. Batia na cabeça do Diu [Waldisom dos Santos], que depois virou Capitão”.
CAPITÃ E PRESIDENTA, NEIDE DE ASSIS SILVA.