Para aqueles da minha geração que frequentaram a Rua Tamóios, 611, no Centro, o nome Butecário sempre constituirá um lugar de memória. Aquele espaço – abrigado dentro do Sindicato dos Bancários – pode ter se desfeito na paisagem, mas até hoje, para alguns, a cada passada pelo local, retorna à lembrança ao lançarmos o olhar para o alto, para aquele prédio outrora rosa. E se olha para as janelas e se lembra que ali, circunscrito em um pequeno conjunto de paredes, um mundo parcialmente paralelo acontecia. Esse mundo existiu no espaço de tempo que marcava o final do velho e o início do novo milênio.
Ali se fazia (ou se tentava criar) um outro mundo ou, ainda, tentava-se introduzir um outro mundo dentro do mundo de todo mundo. Ou se seguirem as literaturas que líamos na época, era uma espécie de TAZ (uma Zona Autônoma Temporária, como definiu Hakim Bey), quando calhava de reunir ali pessoas diversas. Cheguei como quase todo mundo deve ter chegado: um amigo me convidou para ver uns shows, as bandas eram Moan, Feelings, Vellocets e Fuso, algo, para mim, como o melhor do indie rock belo-horizontino da época. A partir desse dia, o retorno seria constante, nem que fosse só na porta, nem que fosse para ver qualquer show que estivesse acontecendo por ali. A gente adentrava para se tornar um retornante. Os dias, obviamente, se tornaram confusos, e é difícil estabelecer uma regularidade ou montar uma linearidade dos shows e acontecimentos, mas bandas como Ingovernáveis, Libertinagem, Soap Bliters, Putrifuncinctor, Dread Full, Errror! fizeram apresentações que, para nós, de uma forma ou de outra, foram históricas. E tinha as bandas de fora de BH também. A primeira vez que Los Hermanos se apresentou na cidade foi lá, muito antes de eles estourarem com Anna Júlia, e, inclusive, bandas de outros países, como Fun People, da Argentina, também invadiram o local.
O canto dos cisnes do Butecário foi o show que não aconteceu: a estadunidense Catharsis não pôde tocar ali, porque uma briga entre punks e straight edges implodiu os grupos que habitavam aquele espaço, que não era homogêneo.
Mas o Butecário não era, simplesmente, uma casa de show em que se entrava e saía – no sobe e desce de suas escadas. O Butecário atravessava a vida de muitos daqueles que frequentava aquele espaço e, hoje, ele é como um rasgo na memória. Não porque aquele espaço tenha sido responsável por causar uma fratura ou um trauma que se quisesse apagado; mas, sim, porque sei que para alguns – e certamente para mim – ele funcionava como uma espécie de transição entre um antes e um depois, e que coincidiu, pra muita gente, com a passagem da adolescência para a juventude. Esse momento em que se sai da menoridade e se lança pra vida, com seus medos, triunfos, energia, idealismo e vitalidade descontrolados.
Mas o que, então, levaria a esse momento de transposição em nossas vidas além dos shows? Qual era o motivo pelo qual as pessoas se reuniam ali, em um espaço no centro de Belo Horizonte? O Butecário não era apenas um local de show, era um local de encontro de pessoas que estavam inquietas em relação a alguma coisa no mundo; e, a partir dessa inquietação, dos shows, vinham as discussões, as problematizações, os zines, os discos com encartes que se pareciam mais com um ensaio do que com um material promocional. Sobretudo a proliferação de zines, das mais diversas estirpes, contribuía para um autoquestionamento sobre a vida (ou o que é viver ou sobre como queremos viver). Ali eram potencializadas problematizações da nossa relação com o mundo, da nossa relação com os outros, da nossa relação com nós mesmos, de modo que quase ninguém saía como entrava, em nenhuma das noites (ou tardes) em que se tornavam presentes as vontades.
No Butecário já havia discussões político/pessoais que transitam por mais de uma década – direitos dos animais, anarquia, feminismo, direito à cidade, monopólio da mídia, consumismo, etc – e que se expandiram também a partir dali, como O Dia Sem Compras na frente do Shopping Cidade; os protestos contra o FMI e o Banco Mundial no centro da capital, ainda no ano 2000. Na ocasião dos protestos, os manifestantes foram acusados de serem “vândalos mascarados”. As discussões também fometaram eventos como o Carnaval Revolução – misto de show, oficinas e discussão política, além de bloco, que passeava pela cidade quando aqui era a outra versão do túmulo do samba –, a Verdurada e várias outras ações que faziam expandir o espaço que anteriormente era circunscrito por uma esquina no centro da cidade. Suas fronteiras se tornaram, também, voláteis, sendo o Butecário mais do que aquela esquina que mudava constantemente de lugar. Claro que aquele território era também parte do mundo, e fingir ou falsificar a memória para que tudo seja imaculado e impoluto seria uma artimanha contraditória demais. Havia ali também machismo, fetiches mercadológicos, homofobia, transfobia, classismo, etc., mas isso poderia ser colocado como um problema e ser discutido. Um assunto não deixaria de ser problematizado, por mais incômodo que causasse internamente naquela assembleia sem vozes fixas.
Discutir o mundo a partir das nossas próprias experiências, a partir de nossos próprios encontros com os outros e com nós mesmos era, a meu ver, o diferencial que fez com que aquele lugar começasse a habitar de maneira nostálgica e mágica os espaços da memória. Similar a outros territórios, como A Obra, Matriz, A Gruta, Estrela [Night Club] e os tantos citados nesta revista e alhures, o Butecário é, como éramos naquela época, um retornante, um espectro da vida que vivíamos intensamente e que volta para nos lembrar de quem somos, de onde viemos e para ajudar a mirar, sempre, aquilo que é possível (e aquilo que queremos) ser hoje.
O Butecário (1996-2000) era um bar localizado na Rua Tamóios, 611, no Centro, dentro do Sindicato dos Bancários, entidade que até hoje tem sede por lá. Além de bar, abrigava shows e festivais. O espaço era administrado por Edmundo Corrêa — personagem heróico da noite belo-horizontina — e pela imprescindível sócia Andrea, que, desde 2000, estão à frente da Casa Cultural Matriz, no Centro, também singular e primordial para a cena independente de BH. Antes ainda desses dois endereços, houve o Espaço Cultural Calabouço (1985-2003), no bairro Primeiro de Maio. A abertura da Matriz coincidiu com o fechamento do Butecário, em 2000, em uma noite em que cadeiras voaram e o confronto, sempre latente entre punks e straight edges, enfim ocorreu. Shows podiam ser realizados à tarde ou à noite; em geral, de quinta a domingo.