Revista Marimbondo

Milton Nascimento & o Clube da Encruza

Milton Nascimento & o Clube da Encruza é o primeiro dos 10 episódios da série Música Negra do Brasil, veiculada pela Rádio Batuta (!), do Instituto Moreira Salles do Rio de Janeiro, elaborado por Ricardo Aleixo, artista e pesquisador das poéticas intermídia, doutor em Letras, por Notório Saber reconhecido pela UFMG, com a colaboração da urbanista e artista intermídia Natália Alves.

O formato híbrido (texto falado + fragmentos de músicas + ruidagem), por ele nomeado áudio-ensaio, busca frisar o uso da matéria sonora não como forma de ilustrar uma determinada proposição conceitual, e sim como um modo de tensionar o que está sendo dito pelas vozes responsáveis pela locução. O áudio[1]ensaio pode ser ouvido no site do IMS e nas principais plataformas de difusão de áudios na web.

 

Sugerimos que a leitura do áudio-ensaio seja acompanhada da audição do episódio em âmbito sonoro.
https://radiobatuta.ims.com.br

 

Música mesmo (Ricardo Aleixo)

música
música mesmo
é milton
quem faz

só com
o som
que sai
da sua boca
ele toca
o oco
da vida
por dentro

do centro
da terra
até o breu
do céu
sem deus
que pesa
imenso
sobre nós

como se
apenas
“palmilhasse
vagamente”
as estradas
deste mundo
com a voz

Bumba-meu-poeta (Murilo Mendes)

“(…)
Meu rancho já está chegando,
estão afinando as flautas,
os violões e os cavaquinhos
ali no clube da esquina.
(…)”

Esses versos constam do longo poema cênico “Bumba-meu-poeta”, que Murilo Mendes publicou em 1935. Sua leitura dá o que pensar: teriam os artífices do famoso movimento musical firmado e confirmado na confluência das ruas Divinópolis e Paraisópolis, no bairro de Santa Tereza, em Belo Horizonte, conhecido o poema de Murilo? Talvez sim, talvez não.

Para o pesquisador Guilherme Trielli Ribeiro, especialista na obra do “mineiro-carioca” Murilo Mendes, o termo “clube da esquina” era “comum nas décadas de 1910 e 1920 e estava ligada a grupos carnavalescos”, como o que o grande poeta modernista menciona no poema citado minutos atrás, e “à música negra em geral”.

Mas, aqui, neste áudio-ensaio, o que interessa não é exatamente a esquina que Milton Nascimento ajudou a fundar e a celebrizar, junto com os seus amigos-parceiros, e sim as encruzas por ele frequentadas ao longo de sua vida de artista. Em especial, interessa a grande encruza que é o belíssimo álbum Milagre dos peixes, de 1973, verdadeiro mergulho de ponta-cabeça nas águas revoltas e turvas do mar oceano Atlântico Negro.

Milagre dos peixes foi o primeiro disco preparado por Milton depois do sucesso do álbum duplo Clube da esquina, do ano anterior, dividido com o também compositor e multi-instrumentista Lô Borges. Em mais um dos frequentes ataques à liberdade de expressão que caracterizaram a ditadura civil-militar, entre 1964 e 1985, Milton teve oito das onze canções do novo álbum vetadas parcial ou totalmente pela censura.

Decidido a enfrentar tamanha violência, o artista convence a gravadora Odeon a deixá-lo gravar só a parte instrumental das composições mutiladas – num ato de ousadia estética e política que resultou em um dos mais importantes discos do período: nele, as vozes, impedidas de cantar palavras, desenham um espaço acústico denso e tenso, ora fluido, ora atritante, em blocos de sons que estabelecem – entre si e com os demais instrumentos – campos relacionais sempre novos e instigantes.

Assim, mesclando polirritmia & vozerio assêmico, isto é, “sem conteúdo semântico específico” & canto sem palavras ou só com fragmentos de versos & fala & gritos & vocalizes & ruidagem, Milton Nascimento fez de Milagres dos peixes, mais do que um notável disco de música popular brasileira, uma obra de POÉTICAS SÔNICAS RADICAIS NEGRAS tão seminal quanto as de Ornette Coleman, Don Cherry, Roland Kirk e outros.

É que, à semelhança de Exu, o trickster do panteão iorubá, Milton é aquele que, na música do irrepetível agora, bordeja, múltiplo e complexo, pelas encruzas do mundo, para acordar o coração da gente, ontem, com os sons que só hoje cantou e tocou.

Nascido no Rio de Janeiro em 1942 e criado em Três Pontas, sul de Minas, o cantor, compositor, arranjador, violonista e pianista Milton Nascimento é uma pessoa-muitas, uma encruzilhada, uma encruza, para dizer em bom afro-brasileirês.

Mas o que é mesmo uma encruzilhada?

Uma hipótese: uma encruzilhada pode ser tudo aquilo que, desde o fundo da mente, projeta- -se em todas as direções, e é o que fica fora da mente, também aí movendo-se, todo o tempo, de baixo para cima, de cima para baixo, de trás para a frente, de frente para trás, de fora para dentro, de um lado para outro, de dentro para fora, “daqui pra lá, de lá pra cá”, como vozeou, com percuciência, o músico e pesquisador Juvenal de Hollanda Vasconcelos (Recife, 1944-2016), que o mundo todo aprendeu a chamar de Naná Vasconcelos.

Uma encruzilhada é sempre um lugar plural, tensionado, aberto, é um “espafro” – outro vocábulo criado por Naná, quando compôs o repertório do seu álbum Amazonas, de 1973, para designar um “espaço afro”.

E se o espaço, conforme nos lembra um outro Milton, o geógrafo-pensador Milton Santos, “é um misto, um híbrido, um composto de formas-conteúdo”, um “espaço afro” pode ser definido como a concentração, num campo comum, das energias criativas advindas de “outras terras, de outro mar”, de outros tempos – passados, presentes ou ainda por vir. Tudo cruzado, entrecruzado, encruzilhado, numa espécie de confusão, isto é, fusão transatlântica, afro-diaspórica, intergaláctica, urbana, suburbana e rural.

Um exemplo de “espafro”: aquela música impossível de ser classificada que Naná sintetizou, assim que passou a tocar com o criador de tanta beleza muito nova & sem idade, como “a África mineira de Milton Nascimento”.

Nos últimos anos da década de 1960, Naná já tinha dado a letra, tão logo se viu diante da nova atração da música popular brasileira: “Milton, eu vim pra tocar com você porque me identifiquei com a sua música, essa música afro- -brasileira, cheia de tradições mineiras, essa forma negra de ver as coisas.”

E é essa “forma negra” de ver, ouvir e fazer soar as coisas que organiza o álbum Milagre dos peixes, um disco composto por muitas pessoas-muitas em torno da pessoa[1]muitas que é Milton. E uma pessoa-muitas, o que é? Resposta possível: um “espafro”. Ou muitos.

Não é por acaso (acaso é a única palavra que Exu, o senhor da linguagem, nunca pronuncia) que o saxofonista, clarinetista, compositor, orquestrador, arranjador, regente e professor Paulo Moura também é figura marcante no disco Milagres dos peixes. Nascido em São José do Rio Preto, em 1932, e falecido no Rio de Janeiro, em 2010, o maestro Paulo Moura foi um contínuo estudioso da música. Contrariando o senso comum, no tocante ao confinamento dos músicos negros à zona nebulosa da “intuição” – entendida, de uma perspectiva eurocêntrica, como oposta ao conhecimento técnico e teórico –, manteve-se sempre atento a todas as modalidades da arte musical, das gafieiras às salas de concerto e às escolas de samba, dos terreiros de candomblé aos palcos jazzísticos e à lida nos estúdios, como instrumentista, arranjador e regente.

Tal como Naná Vasconcelos, o maestro Paulo Moura identificou, na música de Milton Nascimento, um solo fértil para cultivar suas cada vez mais arrojadas concepções de arranjo e de execução instrumental. Basta lembrar o disco Hepteto, de 1968, que escancara o respeito e a admiração de Moura pela complexidade harmônica, melódica e rítmica das composições do jovem e já muito festejado Milton: das doze faixas que integram o álbum, cinco são do autor de “Travessia”. O ciclo miltoniano é completado por um samba composto por Wagner Tiso, parceiro de Bituca desde a infância, em Três Pontas, e pianista do conjunto comandado por Paulo Moura: “Bitucadas n.2”.

Poema 3 (a ser mixado com o início da música “Clementina no terreiro” e, no final, com um trecho de “Taratá”):

“Clementina no terreiro
foi outra que fez furor
reinventando as funções
do aparelho fonador

Boca também toca tambor
Boca também toca tambor
Boca também toca tambor
Boca também toca tambor”

Vinda ao mundo em 1901, na cidade de Valença, Clementina de Jesus, que se encantou no Rio de Janeiro, em 1987, é outra que se pode chamar de pessoa-muitas: sua voz também é um “espafro”: expansiva, abrangente, livre de qualquer tutela, folgazã. Até hoje querem fixá-la em algum lugar do passado, mas como, se o que sai de sua garganta é, nada mais, nada menos do que a invenção de possíveis futuros para a velha arte do canto? Intérprete que, da perspectiva de certo gosto brasileiro pela emissão “limpa e educada”, pode ser classificada como uma “anticantora”, Clementina nos mostra que há mais coisas no caminho entre África e a parte de cá do Atlântico Negro do que fazem supor as concepções tradicionais da musicologia, da etnografia, da antropologia e sabe-se lá de quais outros campos de conhecimento.

Que se ouçam as proezas vocais que Clementina de Jesus realiza no magistral LP Marinheiro só, também gravado naquele, apesar de tudo, bendito ano de 1973, para se entender plenamente a importância de sua participação no Milagre dos peixes. Atenção especial, no disco de Clementina, deve ser dada à faixa “Cinco cantos religiosos”, na qual a cantora e Naná Vasconcelos abolem toda e qualquer noção de temporalidade linear em favor de um jogo de trocas sonoras que entrecruzam variados padrões timbrísticos e rítmicos.

No Milagre dos peixes, coube à Rainha Quelé cantar o refrão da música “Os escravos de Jó / Caxangá”, em meio aos efeitos vocais criados por Milton e Naná e a um coro formado por vozes masculinas. Dura poucos segundos o canto de Clementina, em suas duas entradas, mas o recado já está dado: “Saio do trabalho ê/ volto para casa ê/ não lembro de canseira maior/ em tudo é o mesmo suor”.

Milagre dos peixes: os montanhosos agudos da voz de Milton Nascimento, os graves da voz[1]trovoada de Clementina de Jesus, a voz-berimbau de Naná Vasconcelos, a voz entre o choro e o jazz do sax de Paulo Moura. E muitas outras vozes. Milagre dos peixes vem nos lembrar que “na voz e pela voz se articulam as sonoridades significantes”, como observou o pesquisador suíço Paul Zumthor. As vozes que se fazem ouvir em Milagre dos peixes são “espafros”, “espaços afros”, nos quais se presentificam histórias, fiapos de enredos, sonhos de liberdade e memórias de lutas que só a voz, com ou sem palavras, é capaz de corporificar e, com isso, prenunciar e, por que não?, instaurar, ainda que por breves momentos, um lugar propício para a alegria de ser e estar em comunidade.