Revista Marimbondo

A Pandorga e a Lei

A Pandorga e a Lei foi radiofonizada na Alemanha enquanto João das Neves realizava estágio naquele país. A peça iria ser encenada no encerramento do seminário Tortura Nunca Mais, mas foi cancelada no dia em que estrearia, devido à censura.

Trecho da Cena 10

A cena a seguir é feita por uma só pessoa que, no entanto, assume os diversos personagens que nela estão envolvidos.

DODÔRA: (Berrando, como se fosse um torturador)

– Quem não disser o que nós queremos saber vai acabar como ele!

(Assumindo a própria voz)

“Tenho 30 anos, nasci e me criei no Brasil, pra onde irei voltar, apesar de você. Nasci em Antônio Dias, Minas Gerais, pra seu e nosso governo, amém. Num quarto de pensão – destino – meu pai tava sempre de passagem e minha mãe sempre em sua, sempre em sua, sempre em sua companhia. E a gente, por que não? Afinal, a maioria no Brasil está de passagem, procurando seu posto definitivo. Foi isso que eu fiz. Os senhores me perdoem, eu era criança e idealista. Hoje sou adulta e materialista, mas continuo sonhando”.

– Quem não disser o que nós queremos saber vai acabar como ele!

“Pisei no calcanhar do monstro, e ele virou a cara sobre mim, cego e incontrolável. Foram intermináveis dias de Sodoma. Me pisaram, me cuspiram, me despedaçaram em mil cacos. Me violentaram nos meus cantos mais íntimos”

– Quem não disser o que nós queremos saber vai acabar como ele!

“Chael em cima da mesa. Morto. Dilacerado”.

– Lugar de puta safada é no puteiro. Pra que é que nós estudamos aritmética no Exército? Pra saber que dois mais dois são quatro e que não existe pecado em expiração. Moça donzela você não quis, puta safada também não quer. Minha querida, esse bicho não existe.

“Perdão, meu capitão, eu sou gente. Pra mais além do meu sexo. E minhas matas só percorre quem é nascido no bosque. O senhor tá do outro lado da cerca, já sentiu? Milhões de anos luz nos separam”.

“Depois do inferno o paraíso. EN CHILE NO PASARÁN! Y el pueblo lo decía bien alto, para no oír las olas que ya se elevaban.

Meu Chile lindo, o reencontro da esperança, do amor, da liberdade embriagadora. Y afinal chegaram. E passaram. Un tractor mui, mui pesado, viejo, las cabezas rolaron y insepultas…”

– Quem não disser o que nós queremos saber vai acabar como ele!

– Claman por justicia

           –Quem não disser…

– México, Europa. Aqui estamos senhores. O atraso de dois anos na entrega de nossos passaportes se deve à crise petro-energo-poli-papeleira, verstande? Verstanden und Einverstande, meine Herren. A gente aprendeu a concordar.

           – Quem não disse o que nós queremos saber vai acabar como ele!

– A gente aprendeu a concordar para sobreviver, chegar à primavera.

CORO: Primavera. / Não a de Praga / (Era um menino / com a flor / Da liberdade / Incendida / se cobriu) //Primavera, / Não a de Santiago /(Eram flores / e sob as botas / pisada flor / florida / se cobriu) //Primavera / Não das Gerais / (Que Minas e flores / que as conhecem / não esquece / jamais). // Primavera, / Dora flor / Flor das dores / (Frágil flor / que sob as rodas / flores de sangue / num passaporte / Imprimiu)

DODÔRA: Quem não disser…

“A gente aprendeu a concordar pra sobreviver, chegar às primaveras”.

VOZ: Primavera de 1978.

Berlim

Maria Auxiliadora Lara Barcelos – Dorinha-Dora-Dôra-Dodôra

Doralice

Se atirou à frente de um trem do metrô em Berlim Ocidental.

DODÔRA: “Nasci e me criei no Brasil, pra onde irei voltar, apesar de você.

Unamos nossas vozes, meu povão preto-e-branco”:Salve lindo pensão da esperança / Salve o símbolo augusto da paz. Tua nobre presença a lembrança / Da grandeza da pátria nos traz. / Recebe o afeto que se encerra em nosso peito infanto-juvenil, querido símbolo da terra. / Da amada terra do Brasil.

Corte

 

FICHA TÉCNICA

Dramaturgia e direção: João das Neves