Revista Marimbondo

Pieta Poeta

O ijexá parece bastante com o afoxé, mas essa música começa com ijexá sim.
Simples e cíclico. Tá, tá, tum, tá, tá, tum, tá…

Marchávamos alegremente pela Avenida dos Andradas ao som dessa música, vestidos de dourado,
jogando confete e serpentina, munidos de percussão e brilho, logo atrás do trio.

Avenida dos Andradas. Solo indígena. Avenida construída friamente de concreto e aço sobre o rio
que serpenteava por quilômetros aqui.

“Homem, menino, menina, mulher…”

Estávamos muito alegres, era carnaval. A gente pulava, ria, bebia, dançava.

“Toda essa gente irradia magia presente na água doce, presente na água salgada e toda a cidade
brilha.”

Olhei de repente em volta e vi que eram jovens de 20 a 35 anos em sua maioria. Poucos haviam visto
o rio antes da obra do Boulevard Arrudas. Ninguém ali havia visto o rio em seu esplendor, limpo,
como meu avô dizia. Eu também não.

“É d’Oxum … É d’Oxum …”

Oxum, senhora da cachoeira, ela cujo corpo é o próprio rio, todos eles, estava sendo homenageada
por nós. Cantávamos pra ela que ama ser lembrada pelos filhos.

“Eu vou navegar… Eu vou navegar nas ondas do mar, eu vou navegar…”

Cantávamos pra ela pisoteando a avenida, cujas frestas de respiro tremiam, denunciando que ela,
Oxum sagrada, estava abaixo de nós, no oco entre o rio trancafiado e o asfalto.

“Nessa cidade todo mundo é d’Oxum.”

O som dos bueiros é um grito de socorro. Essa água que sempre-corre sob nós é mais antiga
que qualquer viga erguida nessa cidade. Não se vence o rio. Ele infiltra no concreto, ele quebra
barragem, ele quebra decreto, ele tem memória, ele é Oxum própria. Belo Horizonte vai passar
e o rio vai ficar.

O sol ao se pôr batia nas pedras onde Oxum se deitava e fazia pra ela um espetáculo de sua cor
favorita todos os dias. Foi ela quem plantou os lírios de que tanto gosta nas encostas. Ela fazia
assim, se sentava na beira com água até a cintura, tirava do seu próprio cabelo as sementes e
furava a terra molhada com seu dedo.

Nós quebramos pedra por pedra. Enfiamos trator e máquina, levantamos tudo, fizemos lama, e
derrubados os imensos monolitos onde Oxum ia se benzer na tentativa vaidosa de trancar seu
corpo sob nossos pés. E já nem ouvimos sua voz de correnteza cantar.

“É d’Oxum … É d’Oxum …”

Nós, nós mesmos, que cantamos isso na rua todo santo ano, pois todo ano é santo, sucedemos
no plano de ficar totalmente insensíveis aos gemidos das veias d’água passando logo abaixo de
nós, não só no carnaval, mas enquanto o balaio passa a mil na Andradas, dia de semana, a gente
sente o chão tremer, a gente vê as frestas que se movem com o peso dos veículos, mas a gente não
consegue imaginar o vazio imenso sob nossos pés.

Eu imagino a cena apocalíptica: esse asfalto rachando, se partindo em mil, exibindo o imenso
buraco faminto de engolir carros, bem na cara da Praça da Estação.

E o ijexá segue.

Tá, tá, tum, tá, tá, tum, tá.

Oxum golpeia com os punhos, de baixo pra cima, o concreto dessa avenida, no correr angustiado
desse rio encolhido, apertado, engolido que nós pisamos sem ouvir, sem nem saber.

E vamos jogando nossos pequenos lixos nos bueiros da rua, passando alegremente vestidos de
brilho d’ouro, brilho d’Oxum.

“É d’Oxum, é d’Oxum…”

Enquanto ela vibra com toda sua ira, silenciada pelo concreto do chão dessa avenida

Que treme

Treme

Treme
No ritmo do ijexá.

 

PIETA POETA