Revista Marimbondo

Se essa rua fosse nossa | parte 2

Não é de hoje que Belo Horizonte convive com leis e decretos normatizadores do espaço público que dificultam a realização de atividades culturais nesses locais. A Lei Municipal nº 263, de 8 de agosto de 1923, em seu artigo 4º, estabelecia que “os bailes públicos, compreendendo-se como tais os que dependem da licença da polícia para o seu funcionamento, pagarão, por baile, o imposto de 50$000 no carnaval e 20$000 fora desta época”. A intenção de restringir o número de encontros festivos durante o carnaval pode parecer um contrassenso, mas está em sintonia com o DNA forjado para a cidade por alguns setores da sociedade.

Belo Horizonte acredita que nasceu para ser moderna. Cidade que começou a ser construída em 1887 a partir de um projeto arquitetônico de cunho político, invariavelmente se vê orgulhosa de suas “ruas largas e arborizadas”, uma cidade jardim. “Há uma disputa histórica, entre uma cidade planejada que parece ser sempre devedora de uma cidade da modernidade”, afirma a doutora em História Social, Regina Helena Alves (leia mais na página 70).

Talvez do desejo de alcançar um padrão metropolitano, se refletiu a crença de ter sido fundada por uma população intelectualizada, com referenciais europeus e com grande apreço às “artes”. A edição de 1953 do Anuário de Belo Horizonte comemorava o “desenvolvimento da cultura da cidade”, informando o aumento do número de cinemas, espetáculos musicais e retretas, e de grupos de leitura.

Entretanto, ainda que a voz oficial do governo da época enaltecesse o surgimento de equipamentos e manifestações culturais que lembram um ideário ordeiro e homogêneo, os múltiplos sujeitos belohorizontinos sempre souberam reinventar a vida cultural planejada para a cidade.

As festas carnavalescas de caráter popular — manifestações que têm a rua como um dos seus palcos principais — são realizadas desde a criação de Belo Horizonte. Adeptos de blocos e cordões saíam às ruas, em entrudos, grupos mascarados ou de simples foliões durante o feriado. Para além dos bailes em clubes restritos a associados ou desfiles carnavalescos luxuosos, blocos como Vamos ver quem pode maisOs penetras e Tomara que chova contribuíam para modificar o panorama tranquilo que acometia a cidade nessa época do ano. E apesar da cobrança de impostos para realização de bailes públicos na rua ser maior que em outros períodos do ano, muitos foliões ocupavam o centro de Beagá com marchinhas bem-humoradas e que explicitavam indignações pelas injustiças cotidianas.

Jorge Elian, engenheiro, se recorda com carinho dos carnavais vividos na cidade. Festejados de formas diferentes, mas sempre na rua. “Quando eu era menino — nos anos 50, a gente assistia à batalha de blocos no sábado de carnaval. Eram bandas de percussão que subiam em caminhões e passavam pela Avenida Afonso Pena, um carnaval mais para ver”, conta. Para quem acredita que Belo Horizonte nunca teve vocação foliona, ele narra outras experiências, em outros tempos:

“Já no início dos anos 80, a gente saía de dia pelas ruas fazendo graça com os outros, às vezes com uma peruca ou coisa assim. Todo mundo cantava, batucava, alguns levavam instrumentos. Era uma espécie de bloco sujo, um livre agrupamento de pessoas. Nos encontrávamos na Praça da Estação, na Praça 7, na Igreja São José”.

A rua é quem também acolhe a já tradicional Banda Mole, criada em 1975, à época ainda desvinculada da motivação carnavalesca. Sempre no sábado anterior ao início oficial do carnaval, ela leva sua irreverência à Avenida Afonso Pena (entre as ruas da Bahia e Guajajaras) com desfile de foliões ao som de trios elétricos e das tradicionais marchinhas. Em 2011, reuniu cerca de 40 mil pessoas, número bem menor se comparado a outros anos (já chegou a 400 mil). Mas apesar da mudança no número de adeptos e do local (a Banda costumava subir a Rua da Bahia, do Centro ao bairro de Lourdes), ou mesmo de dificuldades financeiras já enfrentadas para sua realização, permanece o entendimento da população de que a Banda Mole faz parte da vida da cidade. Em 2004,
causou revolta a proibição da polícia de que ela saísse às ruas, em virtude da não concessão de autorização oficial, motivando a criação de uma lei. Aprovada pela Câmara Municipal, ela instituiu o “Dia Municipal da Banda Mole” que obriga a Prefeitura a dar apoio e logística. A população continua a não se furtar de (re)conhecer a cidade nesta (e em outras) épocas do ano. Especialmente de 2009 para cá, a capital mineira vê surgirem novos blocos carnavalescos, de pequeno e médio porte, em diferentes bairros.
Blocos que vêm se juntar aos que já fazem parte da história da cidade, como o Pão Molhado, do bairro Carlos Prates, o Cuequinha do Papai, do Santa Efigênia, e o Vi Uvas no Carnaval, do Santa Teresa. Ao longo de seus pouco mais de cem anos, Belo Horizonte segue reinventando suas formas de “pular carnaval”, buscando fugir da dicotomia carnaval autorizado versus carnaval subversivo, cultura erudita versus cultura popular e, principalmente, cidade imaginada versus cidade vivida.