Revista Marimbondo

Se essa rua fosse nossa | parte 3

A arte de rua faz mais que romper com a lógica de um circuito institucionalizado — constituído por museus, galerias, instituições, fundações, casas de espetáculos, entre outros — por vezes de difícil acesso para público e artistas. A alternativa aos meios tradicionais de circulação e exibição cria potencialmente um ambiente fértil para a experimentação de novas linguagens e a utilização do espaço urbano como veículo de comunicação (uma arte cada vez mais “com a rua” e não apenas “na rua”), contribui para a ressignificação desse espaço. Muitas vezes é o próprio entendimento de espaço urbano que é transgredido, deixando de ser apenas o lugar físico para assumir o lugar de diálogo em esfera pública.

De acordo com o mestre em História Social e autor do livro Insurgências Poéticas – arte ativista e ação coletiva, André Mesquita, já não basta ao artista produzir e retratar uma questão política, “mas a reinvenção de outras formas de emancipação do sujeito, de uma necessidade em produzir coalizões entre posicionamentos éticos e estéticos”. Em sua pesquisa, André percebeu que a produção artística socialmente engajada aparece “em vários momentos, geralmente de muita crise e pressão política”. Ele também identifica causas e objetivos comuns aos coletivos artísticos brasileiros:

“Até os anos 80 estava muito presente a questão da ditadura na América Latina, o inimigo comum era a ditadura, a repressão, o exército, o governo, o estado, o imperialismo norte-americano. O que acontece depois é que o inimigo comum virou um inimigo múltiplo, mas é sempre contra o capitalismo e as corporações. Mas, das preocupações comuns em primeiro lugar está o direito à cidade, o pensar a cidade, em segundo, a desconstrução do discurso midiático.”

André ressalta, no entanto, que nem sempre a não preocupação direta com o aspecto político signifique um esvaziamento político. “Eu percebia muito no discurso de alguns coletivos que o trabalho não era político. É o caso do Poro (leia mais abaixo). Mesmo preocupados com outras questões, a questão política está presente nas escolhas que eles fazem, embora o trabalho não seja político por excelência. Às vezes vemos trabalhos mais engajados e outros que são mais poéticos, mas não necessariamente menos importantes”, avalia.

 

“RUA MULTIPLICA O TRABALHO, MULTIPLICA A EXPERIÊNCIA”

O Poro é formado pelos artistas Brígida Campbell e Marcelo Terça-Nada, um dia colegas de graduação em Belas Artes pela Universidade Federal de Minas Gerais. Há quase uma década, a dupla propõe ressensibilizar o estar na rua — um trabalho que, segundo eles, nunca foi planejado, mas “movido” pelo próprio espaço público. “A cidade é que fez surgir na gente uma série de situações e assuntos. Tem a ver com o sentir a cidade dentro do nosso modo de agir e pensar. Também vai ao encontro do nosso entendimento sobre a função da arte, como se ela pudesse expandir a sensibilidade das pessoas na cidade”, diz Brígida.

 

Em 2003, cobriram um canteiro na Avenida do Contorno (com Andradas) com flores de papel, num trabalho de um dia inteiro. Desde 2007, percorrem ruas de diversos bairros de BH (com boa concentração no Concórdia, Floresta e imediações do Centro) colando azulejos de papel, por eles confeccionados, em muros de casas e lotes abandonados. E como também distribuem gratuitamente para que outras pessoas possam fazer suas próprias instalações, é possível encontrálos em diversas cidades pelo Brasil e pelo mundo (para acompanhar acesse http://poro.redezero.org/azulejos). Já em 2009, a dupla lançou, em grandes quantidades e do alto de um edifício no cruzamento entre as avenidas Afonso Pena e Amazonas, a imagem de um pássaro impresso em papel com a frase Olhe para o céu. Nesse mesmo ano, percorreram ruas dos bairros de Santa Teresa, Floresta e Sagrada Família colocando faixas de “antissinalização” entre postes ou sendo seguradas por voluntários em sinais de trânsito. Nelas, era possível ler frases como viva a borda, desloque o centro; perca tempo; enterre sua tv; desenho é risco; assista sua máquina de lavar como se fosse um vídeo ou atravesse as aparências. A maioria delas permaneceu lá por poucos dias (duas semanas foi a maior “duração”). Mas o caráter efêmero não é, para a dupla, algo problemático. “É justamente no fato de o trabalho não permanecer que reside a potência dele. É o fato de ele existir enquanto ação proposta e não de ter o trabalho como objeto”, afirma Brígida.

Ao reivindicar a cidade como espaço para a arte, a dupla permite que seu trabalho seja apropriado pela cidade. “A gente cola um cartaz e, ao lado, tem outro de um show sertanejo. Depois a pessoa vem
e cola outro por cima, alguém vem e escreve em cima. São múltiplas as intervenções e interferências na obra. E como a cidade é dinâmica, o trabalho está à mercê da cidade. Na rua são 10 mil, são mais olhares. Ela multiplica o trabalho, multiplica a experiência”.

Apesar de a dupla desenvolver suas ações também em outras capitais (São Paulo, Fortaleza, Rio de Janeiro, entre outros), Brígida aponta uma característica em especial para desenvolvê-lo em Belo Horizonte. “Há falta de sensibilidade do espaço a ponto de a gente ter de se mobilizar, de discutir as relações políticas do espaço público. Isso que vemos hoje é triste e preocupante, um contexto complicado, em nome do lucro, com poder para pouquíssimos. Não é o papel da arte mudar a política, mas arte tem de gerar conversa. Ela pode cumprir o papel de sensibilizar para o espaço, não somente para o espaço urbano, mas sensibilizar para o espaço da política.”

Neste ano, foram disponibilizados no site do Poro vários cartazes para serem baixados gratuitamente. A ação veio acompanhada do pedido: “depois de imprimir e espalhar os cartazes, envie fotos pra gente :-)”.